Fechada no seu paraíso kantiano de paz perpétua a União Europeia acreditou, até 24 de Fevereiro último, que os desafios e conflitos internacionais se resolviam com diplomacia e boa vontade. Que tratar ao chefes de estado pelo nome próprio seria suficiente. É interessante como, mesmo com as inúmeras páginas que se escreveram sobre a candura e inocência que conduziram o Velho Continente à Primeira Guerra Mundial, a lição ficou esquecida. A UE foi tão inocente que, candidamente, acreditou que convencia os restantes países do mundo a serem como ela ou que podia viver à margem destes.

Um bom exemplo desse tipo de comportamento foi a forma como a UE lidou com as alterações climáticas. Talvez porque nunca deixámos de sentir que o mundo gira à nossa volta, nós, europeus, levámos a peito a empreitada contra as alterações climáticas. Convencemo-nos que se nada for feito como achamos que deve ser feito o mundo acabará numa geração. Pelo menos o mundo tal qual o conhecemos. A solução? Não repetir os erros do passado, ou seja, poluir menos, mesmo que isso implique menos crescimento económico. Para nós, europeus, o custo é suportável porque já vivemos bem. O nosso nível de vida é muitíssimo superior ao dos nossos avós, sem falar dos avós deles. Já para o resto do mundo alheado deste luxo, nomeadamente China, Índia e demais países asiáticos, a questão não é bem essa. Estes precisam de retirar milhares de milhões de pessoas da miséria. Para isso é urgente enriquecer. E para enriquecer, não poluir não é uma prioridade. É o que têm feito e é o que vão continuar a fazer. Até 24 de Fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a economia verde estava no topo da agenda europeia pois os países europeus chegaram a um ponto de desenvolvimento que lhes permitia essa ostentação. O mesmo não sucedia nem sucede com os estados fora do paraíso kantiano europeu. A Europa sabia que sem a colaboração das economias emergentes (países mais populosos e mais poluidores) o seu esforço seria ínfimo e insignificante. Mesmo assim considerava que deviam seguir o seu exemplo. Porquê? Pela autoridade moral que daí advinha. O combate às alterações climáticas, tal como era apresentado até há três semanas, foi uma nova forma de neocolonialismo. Uma manifestação de superioridade da Europa face os demais.

Contrariamente ao que acontecia no passado essa superioridade não derivava de os europeus serem mais eficientes, produtivos e criarem mais riqueza. Advinha simplesmente de nos darmos ao luxo de não nos preocuparmos com assuntos tão triviais, tão materiais. O objectivo já não era vivermos melhor, mas que a natureza estivesse melhor.

Depois a realidade bateu à porta. Literalmente, não fizesse a Ucrânia fronteira com 4 países da União Europeia. A invasão da Ucrânia pela Rússia pôs em evidência o que muitos temiam: a dependência energética dos europeus face à Rússia. Dependência que se agravara com a decisão da Alemanha fechar as suas centrais nucleares. O objectivo oficial foi o da redução das emissões de gases para atmosfera, nomeadamente dióxido de carbono e clorofluorcarboneto. Oficial porque os críticos dessa decisão referiam que as centrais nucleares alemãs não eram as principais responsáveis pela emissão destes gases. O movimento anti-nuclear começou na Alemanha nos anos 70. Não deixa de ser curioso que o fecho das últimas centrais nucleares esteja previsto para o mesmo ano em que a Rússia invadiu a Ucrânia.

O que sucedeu não levou apenas os europeus a reconsiderar a sua estratégia militar e energética. Estão também a reenquadrar as suas prioridades. As alterações climáticas são uma ameaça séria, mas que não se enfrenta com menos crescimento económico e apenas mais investimento público. As alterações climáticas são um assunto sério, mas não um pretexto para fortalecer o poder dos estados. As alterações climáticas são um assunto sério e, por isso, devem ser enquadradas com os demais desafios também estes sérios e urgentes. Caso contrário, o preço pode ser uma guerra com as suas implicações climáticas, mas também estratégicas e que põem em causa a nossa segurança e bem-estar. Sem mencionar os graves custos políticos.

É importante que a Europa resolva os seus problemas e deixe de apenas querer ser o exemplo de uma moral que impõe aos restantes. Os tempos da virtude europeia acabaram. Os países europeus precisam confrontar a Rússia, ganhar margem de manobra face a Pequim, permitir que a iniciativa privada aposte na tecnologia e na inovação com vista a reduzir a ameaça climática. Necessitam de resolver o problema que são as dívidas públicas, combater a inflação e afastar os conflitos militares para longe das suas fronteiras. Precisam de convencer os seus eleitorados a aceitar mais investimento na defesa mesmo que isso implique mais impostos ou menos estado social. Para isso é preciso muito sangue-frio e pragmatismo. Porque na política a virtude não é um desfilar de boas intenções, mas um jogo de equilíbrio e bom senso.

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