A 1 de Julho de 2016, no aniversário do primeiro centenário do início da Batalha do Somme, o artista Jeremy Deller distribuiu pela cidade de Londres uma série de homens e rapazes entre os 18 e os 42 anos, vestidos com a farda britânica da Primeira Guerra Mundial. Na estação de Waterloo, à porta de um ‘Pret A Manger’, nas escadas de acesso ao metro, nos comboios, sentados nas esplanadas e nos bancos dos jardins da capital britânica, àqueles que se lhes dirigiam simplesmente entregavam um cartão com o seu nome e posto. Não falavam porque estavam mortos. Representavam os fantasmas dos desaparecidos no Somme e cujas vidas foram cortadas e não tiveram seguimento. A Batalha do Somme durou perto de 140 dias e nela terão perecido mais de um milhão de soldados, dos quais 400 mil eram britânicos.

Há um ano um conflito desta envergadura era impensável na Europa. Com ou sem sonhos concretizados, bem ou mal a vida era para ser vivida. Morrer numa batalha não se tornara apenas estúpido e inútil; também era impossível. Mas em 2022 o inimaginável surpreendeu-nos e o heroísmo que víamos nos filmes regressou à vida por via da morte. Na Ucrânia terão morrido perto de 200 mil soldados de ambos os lados.

Roman Ratushnyi tinha 24 anos quando foi morto em combate, em Junho, perto de Izium, na província de Kharkiv. Podia ser meu filho, filho ou neto de muitos que lêem esta crónica mas, essencialmente, era um rapaz cheio de projectos, iniciativa, lutador e que esperava vir a ser muita coisa menos perder a vida tão cedo e da forma como aconteceu. Em 2014 participou nas manifestações na Euromaidan a favor de uma aproximação à Europa e de um afastamento da Rússia e da comunidade da Euroásia. Em 2018 envolveu-se contra um projecto urbanístico que implicava a destruição de um parque com pistas de esqui, perto do centro de Kyiv, e que lhe valeu alguns problemas com as autoridades.

A 24 de Fevereiro ofereceu-se como voluntário na defesa da capital e, após essa vitória, foi enviado para a região de Izium onde caiu numa emboscada a 9 de Junho. Não sabemos o que sentiu nesses meses, provavelmente medo, muito certamente nenhuma dúvida sobre o que devia fazer. Este é o ponto que mais me arrepia nesta e noutras histórias, sejam a de Ratushnyi ou a de muitos outros ucranianos nestes últimos meses, britânicos e franceses, alemães e russos, norte-americanos e das mais diversas nacionalidades de há cem e 80 anos. O que os moveu, a força que não os demoveu apesar do medo, do pânico, da aflição e da ideia que não deixa de lhes ser segredada ao ouvido, que podem sair, ir embora, que há vida noutro lugar, noutras condições e com outro futuro.

Roman Ratushnyi é a minha escolha para a figura de 2022. Não só por quem foi, houve e há vários como ele, mas pelo que fez e representa: a força interior que a Europa teria perdido, mas que existe e sobreviveu e desperta e se revela quando preciso; quando as circunstâncias o pedem. Mete dó ler o que os amigos escreveram sobre Ratushnyi, o que esperavam dele, os seus sonhos, o entusiasmo com que vivia os desafios que davam sentido à sua vida e é com custo que percebemos que não podia ser de outra forma. A sua morte e a forma como ocorreu eram inevitáveis, pois não havia outro caminho, a fuga não seria uma forma vida e, provavelmente, terá corrido riscos superiores aos exigidos. Ratushnyi e muitos outros jovens ucranianos já cá não estão para viverem o que esperavam fazer porque fizeram o que estava certo. Felizmente, com a vitória da Ucrânia e a sua aproximação à Europa e (quem sabe?) a possível integração na União Europeia e o motor de desenvolvimento que influenciará a Rússia, não serão precisos actores para recriar a juventude de Ratushnyi nas ruas de Kyiv. Ele e muitos outros serão lembrados de forma diferente. As suas vidas serão vividas através dos próximos miúdos que, mesmo quando velhos, se recordarão deles com gratidão.

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