“Mandela’s Dream for South Africa is in ruins” – escreve Robin Wright na New Yorker de 28 de Julho, a propósito da violência que acabara de assolar a República da África do Sul. 

O saldo da semana trágica foram 350 mortos, milhares de feridos e detidos, mais de 40.000 estabelecimentos – bancos, lojas, supermercados, estações de Correios – destruídos ou saqueados e um profundo pessimismo generalizado quanto futuro do país. Um país que, depois do fim do Apartheid e das primeiras eleições democráticas, em 1994, foi considerado um caso de sucesso de transição do poder e de equilíbrio inter-étnico.

Um longo processo

Esse sucesso teve um nome e um protagonista: Nelson Mandela, o líder do ANC (African National Congress), julgado e condenado pelo governo do Partido Nacional e durante 27 anos prisioneiro nas cadeias de Robben Island, Pollsmoor e Victor Verster.

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Mandela foi de facto uma figura central no processo, uma figura que se revelou exemplar, até pela ausência de ressentimento para com os seus ex-inimigos, como foi também central F. W. de Klerk, que negociou o final da transição do lado do poder. 

Mas as negociações vinham de longe e o processo fora longo; um processo em que houvera tempo para negociar e para acautelar garantias de parte da parte. Mandela seria libertado em Fevereiro de 1990 mas as negociações entre o ANC e o National Party (NP), então no poder, tinham já começado na década anterior; negociações informais que envolveram também a comunidade empresarial e governos estrangeiros, como a América de Reagan. Em 1986, já na prisão de Pollsmoor, Mandela iniciara conversas secretas com Kobie Coetsee, ministro da Justiça de Pretória. Dois anos depois, em Dezembro de 1988, fora transferido para Victor Verster, na região de Paarl, ficando detido numa residência. Aí, continuara contactos e negociações com Coetsee e, em 5 de Julho de 1989, tivera um encontro secreto com o presidente da República, P. W. Botha. Em Dezembro, estivera com De Klerk, o sucessor de Botha.

Mandela foi libertado em 11 de Fevereiro de 1990. Seguiu-se um longo processo negocial, com altos e baixos, interrompido por acções violentas radicais, protagonizadas sobretudo pela ala armada do PAC (Pan Africanist Congress of Azania), uma dissidência pela esquerda do ANC, que recorreu a atentados e a assassinatos de brancos para perturbar o processo de paz. Também do lado dos radicais do Apartheid houve crimes e atentados.

A negociação demorou mais quatro anos. Firmaram-se garantias jurídicas, constitucionais, militares e económicas e a comunidade branca partilhou o poder. E durante as presidências de Nelson Mandela e do seu sucessor, Thabo Mbeki, com mais ou menos incidentes, foi-se mantendo um certo equilíbrio entre as diferentes comunidades étnicas, num quadro de democracia partidária com hegemonia do ANC.

A ascensão de Jacob Zuma

As coisas começaram a mudar em 2005, quando o presidente Thabo Mbeki entrou em ruptura com o seu Vice-Presidente, o zulu Jacob Zuma. Zuma fora, desde jovem, um activista de A Lança da Nação, o braço armado do ANC. Passara 10 anos em Robben Island com Mandela e outros líderes rebeldes, mantendo-se sempre ligado à rede clandestina e armada do ANC. E tomara parte nas negociações entre os mais ortodoxos de um e outro lado: os operacionais do ANC e os generais boers.

Um dos pontos fracos do ANC era a província de Natal, onde existia um partido identitário zulu, o IFP – Inkatha Freedom Partydo chefe Buthelezi. Zuma conseguiu aí melhorar a votação do ANC, vencendo a influência do IFP. Nessa altura, o ANC começava a sofrer os efeitos do seu poder hegemónico: as promessas de justiça económica não cumpridas, o alastrar da corrupção, a desastrosa gestão de Mbeki do HIV/AIDS. Entretanto, a oposição da DA – Democratic Alliance – subia e tornava-se maioritária no Cabo Ocidental.

Zuma foi afastado por Mbeki em 2005 por suspeita de corrupção passiva por uma firma francesa num grande negócio de armamento. Mas saiu vencedor da disputa com Mbeki e, graças aos militantes zulus, foi eleito presidente do Partido e, depois, presidente da República. 

Nos seus dois mandatos continuou debaixo de fogo, com sucessivas acusações de corrupção, quer da oposição, quer do seu próprio partido. Os escândalos multiplicaram-se – corrupção, tráfico de influências e envolvimento directo ou indirecto com grupos económicos, como os irmãos Gupta, um grupo indiano, muito favorecido por decisões político-económicas tomadas pelo governo –, com os prejuízos para o Estado e para o país a escalarem. E em 2018 foi obrigado a abandonar o cargo e foi afastado da direcção do ANC. Substitui-o o actual presidente, Cyril Ramaphosa, um ex-dirigente sindical (líder da COSATU) e empresário de sucesso, no âmbito do Black Empowerment pós-Apartheid.

Zuma estava agora a ser processado pelo Tribunal Constitucional e recusara-se a comparecer. O Tribunal condenara-o a 15 meses de prisão, ao que o ex-Presidente resistira, acabando, no entanto, por entregar-se. 

Foi na sequência da sua detenção e depois das ameaças formuladas pelos seus partidários que se desencadearam na sua província de Kwazulu-Natal e em Gauteng – onde está a cidade de Joanesburgo – os trágicos incidentes de Julho.

Sementes de violência

A organização dos distúrbios terá sido obra de partidários de Zuma, que conta com cumplicidades nos serviços de segurança e inteligência, onde deixou adeptos, e entre os radicais da chamada RET (Radical Economic Transformation). 

Não terá sido, de resto, difícil recrutar outros descontentes num dos países mais “desiguais” do mundo, apesar das reformas políticas; um país onde, nos últimos 25 anos, a pobreza alastra e o desemprego cresce exponencialmente, atingindo sobretudo a população jovem. 

Estará o sonho de conciliação de Mandela – de raças, tribos, povos, vivendo em harmonia e partilhando uma mesma terra – irremediavelmente comprometido? Serão já inconciliáveis as diferentes comunidades sul-africanas – agora visivelmente condicionadas por factores económicos, culturais, políticos e étnicos de confrontação?

A forte religiosidade de inspiração bíblica da sociedade sul-africana (a maioria dos negros, brancos e mestiços é cristã e pertence às igrejas reformadas) pesou muito na transição. Como pesou a independência dos tribunais e a pujante economia de mercado. Mas até que ponto é que a onda de violência destruiu o que foi construído no último quarto de século? Como irá afectar o futuro do país no médio e no longo prazo?

Segundo um inquérito da Brenthurst Foudation, na semana seguinte à violência, a grande maioria dos sul-africanos tinha medo do futuro ou dizia-se mesmo desesperada. Curiosamente, os brancos e os mestiços mostravam-se mais esperançados do que os negros. E nas províncias de Gauteng e Kwazulu-Natal, as províncias onde se deram os distúrbios, a esmagadora maioria dos inquiridos considerava que a resposta do governo à crise tinha sido lenta e pouco eficaz.

A Remodelação

Daí a remodelação governamental de 5 de Agosto último. As principais mudanças apontam para a reorganização e o reforço da Segurança de Estado, sob comando presidencial directo, com a extinção do Ministry of State Security e a passagem da State Security Agency para a dependência da Presidência da República. O novo ministro da Presidência, Mundi Gungubele, terá a seu cargo a Segurança, coadjuvado por Zizi Kodwa, ex-Ministro Adjunto, e por Sydney Mufamadi, que esteve no governo de Unidade Nacional, o primeiro pós-Apartheid, entre 1994 e 1999 e que passa agora a ocupar as funções de Conselheiro Nacional de Segurança. Foi também substituída a ministra da Defesa, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, por Thandi Modise, a speaker do Parlamento. O ministro da Polícia, Bheki Cele, que continua, é visto como um dos impulsionadores da mudança. 

A remodelação é também uma forma de Ramaphosa concentrar o poder, nomeando uma equipa da sua confiança, como os novos ministros das Finanças e da Defesa, e afastando alguns críticos, como a ex-Ministra da Defesa. O novo Ministro das Finanças, Enoch Godongwana, visto favoravelmente pelos investidores e pelas instituições financeiras internacionais, foi um opositor às políticas económicas mais radicais defendidas por Zuma e seus partidários. 

Tudo isto vem num dos momentos mais negros da economia sul-africana, quando convergem os efeitos da Covid, a violência de Julho, uma violência sem precedentes desde o fim do Apartheid, e a fuga de capitais e de grandes contribuintes.

Acabado o regime de separação racial e o domínio político e institucional de uma minoria branca sobre uma maioria não-branca, parece ter também desaparecido o interesse mediático internacional e a denúncia da extrema violência e desigualdade na África do Sul – que agora aparece, devidamente amalgamada, como “mais um dos países africanos mergulhados em conflitos étnicos”. O cliché dos grandes “opinion makers” para os “países em desenvolvimento”.