Aqui estamos em 2020 de volta à casa da partida: o regime nascido em 1974 está a passar à História. O impacto da epidemia acabou a expor quase obscenamente uma classe política de tal forma alienada e anquilosada que já nem vê como é ofensivo ir celebrar a liberdade e a igualdade numa cerimónia em que os participantes fazem tudo aquilo que foi proibido aos demais portugueses.

Eles, os donos do que dizem ser o nosso tempo, nem percebem como reproduzem, passo por passo, os tiques do regime cujo final querem celebrar: depois de anos, décadas, quase meio século a troçarem da cerimónia da brigada a que chamaram do reumático (a 14 de Março de 1974, oficiais-generais dos três ramos das Forças Armadas mostraram o seu apoio a Marcelo Caetano numa cerimónia em que sobressaíram as ausências de Spínola e Costa Gomes) também eles estão transformados numa brigada do reumático e reivindicam a sua cerimónia como se ela fosse um amuleto.

Sem soluções para o futuro, agarrados à vacuidade das palavras tantas vezes ditas e cansadas pelo confronto com uma realidade que se tornou escarninha, precisam de celebrar a data fundadora do regime já não como uma vitória sobre o passado, ou de exaltação do presente  mas sim como um exorcismo face a um futuro que temem e para o qual não têm propostas. O combate aos fascismos futuros cumpre agora o papel retórico de anos de evocações e recriações dos fascismos passados: iludir o momento em que alguém faça o balanço entre o prometido a 25 de Abril de 1974 e o concretizado nos anos seguintes.

(A propósito das declarações de Ferro Rodrigues sobre a celebração do 25 de Abril na AR– A Assembleia da República não saiu do terreno da vida política democrática com a pandemia, o estado de emergência ou a pressão de saudosistas, anti-parlamentares ou seguidores de fake news“ – alguém consegue na muito longa carreira do actual presidente da Assembleia da República descobrir um pensamento, uma frase ou uma ideia que se elevem um pouco acima do constrangedor?)

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Mas o Covid expôs mais. Expôs na DGS uma administração pública cada vez mais servil perante o poder político e menos apta para servir o povo. Expôs uma comunicação social mais interessada em provar as suas teses sobre o mundo do que em informar: assim os mesmos jornais portugueses que detalham com afinco o falhanço da administração norte-americana no combate ao Covid-19 não conseguem produzir uma notícia que seja sobre um país aqui bem próximo onde uma catástrofe está a acontecer perante a indiferença geral: a Bélgica. A Bélgica tem uma população semelhante à portuguesa, fez muitos menos testes, tem duas vezes mais casos e o número de mortos é quase sete vezes superior ao português. Como é isto possível? E como é possível que não seja destacado?

A pandemia expôs também uma fractura que não tem parado de crescer na sociedade portuguesa: as desigualdades crescentes entre o país do partido-Estado, de que falava Medina Carreira, (esse país não só se adaptou muito bem às medidas de confinamento como não lhe parece inviável vivermos em quarentena enquanto existir um caso de Covid-19) e o outro país, o do sector privado, muito particularmente esse sector privado que o estatismo-socialista detesta: os micro e pequenos empresários que ficaram privados de rendimento e agora ficam também fora dos planos de apoio anunciados pelo Governo.

E sobretudo os tempos da pandemia mostraram-nos o que já sabíamos: não é necessário que existam censura ou polícia política para que na sociedade portuguesa se crie um pensamento único, basta que o poder seja de esquerda. Quarenta e seis anos depois do 25 de Abril aqui estamos presos naquela patética armadilha em que discordar do governo ou criticá-lo não é discordar do governo ou criticar o governo mas sim criticar o país e estar contra Portugal. Noutros tempos chamou-se a isto a situação. E agora será cidadania?