A última solenidade do ano litúrgico é a celebração da realeza de Jesus Cristo, no domingo imediatamente anterior ao primeiro do Advento, o tempo litúrgico que prepara o Natal. Essa celebração tem um carácter eminentemente apocalíptico: no final dos tempos será manifesta a realeza universal de Jesus de Nazaré.
Alguns cristãos, talvez mais impacientes, quiseram antecipar na terra o reino de Cristo, mediante transformações sociais e políticas susceptíveis de realizar os ideais evangélicos da justiça e da paz. Escusado será dizer que todas essas tentativas, ainda que bem-intencionadas, ficaram muito aquém do ambicioso propósito que as animava.
A realeza de Cristo é uma constante da sua vida terrena. É porque nasceu como Rei dos Judeus que Herodes, por temor de ser destronado, mandou matar todas as crianças recém-nascidas em Belém (Mt 2, 16-18).
Foi recebida, com grande expectativa, a missão de João Baptista, o precursor, que alguns pensaram ser o Messias (Jo 1, 19-28). Decapitado por um outro Herodes (Mc 6, 14-29), a população voltou-se então para Jesus de Nazaré, um rabi desconcertante, porque parecia pouco ortodoxo nalguns dos seus ensinamentos e práticas: recorde-se a parábola dos vinhateiros homicidas, que profetizou a substituição de Israel por um novo povo de Deus (Lc 20, 9-19); os anúncios da destruição da cidade de Jerusalém e do seu templo (Mt 24, 21); bem como a sua interpretação, algo heterodoxa, do descanso sabático. Por ser alguém revestido de um poder sobrenatural, atestado por inúmeros milagres, esperava-se dele a tão desejada restauração da independência e grandeza de Israel.
Os discípulos de Jesus, ante a evidência de um grande milagre, quiseram entronizar o Mestre (Jo 6, 15-21), na expectativa de que, assumindo a chefia de Israel, restaurasse a sua liberdade, pondo fim à dominação romana.
Também os discípulos mais próximos do Mestre, primeiros destinatários dos seus ensinamentos e a quem tudo o Senhor Jesus explicava em pormenor (Mt 13, 10-17), partilhavam esse ideal político. Dele dão conta os filhos de Zebedeu, quando pedem ao Mestre os dois principais lugares no seu reino (Mc 10, 35-40); ou quando o exaltam na sua entrada triunfal em Jerusalém, já na iminência da sua paixão e morte na Cruz (Lc 19, 28-38).
A pretensão de converter a missão do Filho de Deus numa acção política precipitará, até, o desfecho da sua vida terrena. Embora condenado à morte, por blasfémia, pelo Sinédrio, a máxima autoridade religiosa judaica (Mt 26, 57-66), o título da sua condenação civil foi, no entanto, a sua confessada realeza (Jo 18, 28-40). Por isso, na Cruz, foi afixado um letreiro com a inscrição: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus (Jo 19, 17-19). Palavras, decerto, providenciais, como providencial foi também que essa inscrição constasse em três línguas – “hebraico, latim e grego” (Jo 19, 20) – atestando desse modo que a realeza de Cristo não é apenas nacional ou regional, mas universal, porque “ele é, verdadeiramente, o Salvador do mundo” (Jo 4, 42).
Mesmo depois da sua gloriosa ressurreição, ainda houve quem perguntasse ao Mestre se era então que ia, finalmente, restaurar o reino de Israel (At 1, 6)!
O sonho de um regime político cristão, que realizasse os seus propósitos de justiça e paz, não se realizou na vida do Mestre, nem depois, quando os cristãos eram maioria no império romano. É verdade que, no ano 313, com o édito de Milão, do Imperador Constantino que, no final da sua vida, se converteu ao Cristianismo, a religião cristã deixou de ser oficialmente perseguida pelas autoridades imperiais, sem que se inaugurasse um regime político inspirado nos Evangelhos. Com a queda dos impérios romanos do Ocidente e do Oriente, a principal ameaça contra a Cristandade veio dos bárbaros e muçulmanos, respectivamente.
Depois de evangelizados os povos germânicos, a Europa cristã sofreu um dramático colapso com a invasão árabe. A Reconquista, que teve em Pelágio o seu fundador, nasceu como luta pela independência dos povos peninsulares e pela sua liberdade. Não em vão, a nossa primeira insígnia nacional foi a bandeira dos cruzados – uma cruz azul sobre um fundo branco – como cruzados foram também muitos dos libertadores do que seria depois o reino de Portugal.
Liberta a Europa do jugo islâmico – que agora, de novo, ameaça a liberdade europeia – a república cristã medieval atribuiu aos monarcas um carácter quase sagrado, que encontrou justificação na teoria da sua eleição divina, confundindo muitas vezes o plano temporal com a dimensão sobrenatural. Se o monarca era ungido – Cristo quer dizer, precisamente, o ungido –, atentar contra o poder real era, portanto, um sacrilégio e um crime, que devia ser punido pela Igreja e pelo Estado. Por sua vez, a heresia, sendo um pecado para a Igreja, era também um delito para o Estado, que era quem punia, até com a morte, os que o tribunal eclesiástico condenara como hereges.
Com o fim do Antigo Regime, a Europa cristã sofreu um novo e sangrento sobressalto: a revolução francesa, embora ocorrida na nação que se orgulhava de ser a filha primogénita da Igreja, e proclamasse os ideais cristãos da liberdade, igualdade e fraternidade, inaugurou uma nova era de terror, que antecipou os genocídios provocados pelas ditaduras ateias do século XX, nomeadamente a nacional-socialista e a comunista.
Então, assim sendo, que resta da realeza de Cristo?! De que serviu, afinal a sua vinda a este mundo, se, dois mil anos depois, há ainda tantas guerras e injustiças?! Será de concluir que, como reformador social, Jesus de Nazaré fracassou?
Sim, olhando para o mundo e, em especial, para a sua terra, que não em vão é a Terra Santa, é-se levado a supor o fracasso de Cristo-Rei. Não obstante a aparência dessa derrota, a realeza de Cristo não só se verificará, visivelmente, no final dos tempos, como é já uma gozosa realidade nos corações dos muitos milhões de mulheres e homens que o amam e seguem e que, “no meio de uma nação depravada e corrompida”, brilham “como astros do mundo” (Flp 2, 15). É neles e por eles que Cristo, embora de forma ainda não manifesta, reina no mundo. Viva Cristo-Rei!