Talvez seja só impressão minha, mas parece-me possível que mais de 90% dos portugueses não tenha lido o famoso despacho ministerial e que, naturalmente, se tenha limitado a encolher os ombros sempre que lá vem mais uma notícia sobre casas-de-banho. Foi isso que eu fiz, por exemplo, e acredito que as pessoas que vivem fora das bolhas mediáticas e dos clubes pós-intelectuais, favorecidos pelas redes sociais, fizeram. Não, não me parece que os portugueses, na sua esmagadora maioria, estejam preocupados com as questões da “ideologia de género” – mesmo nos casos em que ela é, de facto, invasora, proibicionista e impositiva, e, claro, merecedora de oposição. Não, pelo menos, num país em que urgências de maternidades encerram por falta de obstetras. Não num país em que, segundo dados de 2017, quase meio milhão de crianças depende de leite escolar, mais de duzentas mil têm refeições subsidiadas e quase trezentas mil recebem outro tipo de apoios sócio-económicos. Não num país em que, também segundo dados de 2017, 45% das pessoas se encontra em risco de pobreza antes de qualquer transferência social. Os portugueses, de resto, não têm dado poucos sinais aos partidos, da esquerda à direita, sobre aquilo que de facto os preocupa: a saúde, à cabeça, e a corrupção (e não a carga fiscal, ao contrário da narrativa da direita).

Ora, num país tão pequeno que nem devia ter interior, largamente concentrado nos arrabaldes da capital e da segunda maior cidade, com milhões de pessoas a viverem com um salário médio inferior a mil euros, com tanta gente que ganha tão pouco que nem impostos sobre o rendimento paga, que passa todos os dias 2 ou mais horas em transportes públicos que não funcionam, que paga balúrdios por creches e que, também por isso, tem menos filhos do que queria ter, que sente que não tem tempo para nada, que o que ganha não paga o esforço que faz todos os dias para trabalhar, que sente que quando precisa de cuidados de saúde o mais que pode fazer é rezar para ter sorte, que a única e mais viável forma de garantir um futuro de sucesso através do mérito aos filhos é pô-los numa escola de futebol, que paga impostos altos para a qualidade dos serviços do Estado, que, apesar dos impostos que paga, sempre que precisa de alguma coisa do Estado ainda tem de pagar por isso e ainda corre o risco de encalhar na burocracia e na corrupção, é natural que as pessoas não estejam muito interessadas em discutir temas que interessam a uma minoria de privilegiados: à esquerda burguesa, progressista e cada vez mais afastada dos trabalhadores, que vive em conflitos identitários e sociais, e à direita beata e aparentemente aristocrática, que o resto das pessoas dela só sabe que os seus membros usam dois apelidos e dão apenas um beijinho. É natural, porém, que a esquerda faça destas causas identitárias uma bandeira. Mas não é nada natural que a direita, como cão de Pavlov, apenas ladre ao som da sineta das causas fracturantes e da ideologia de género, funcionando em matilha, sem apresentar alternativas, dentro de um quadro não progressista e revolucionário, que, por exemplo, defenda os adolescentes trans.

Na verdade, a direita que temos ainda não percebeu que pode ser socialmente conservadora nas suas posições políticas, mas que deve ser humanista nos seus gestos e na forma como enquadra as suas posições políticas num contexto de humanidade e de preocupação com o outro. É que se pode, por exemplo, não ser favorável ao casamento entre pessoas do mesmo sexo sem ser homofóbico. A direita não abre a boca sobre os homossexuais que foram, um destes anos, espancados na festa do Avante (até se poupando a criticar o PCP), mas escandaliza-se com passadeiras às cores. Esta direita que temos é (repito-me) bastante beata e recusará esta ideia de que não é humanista — porque adora a humanidade que vive no seu igual, quando o próprio Cristo preferia os pecadores. Não fala a pobres, a desempregados, a vítimas, à gente cansada do quotidiano e das casas com marquises. E queixa-se – como é possível que se venha a queixar a 6 de outubro – de que ninguém queira saber deles quando é hora de colocar a cruz no quadradinho. É obra.

Repare-se, por exemplo, na greve dos motoristas de materiais perigosos deste Verão. O direito à greve foi atacado de uma forma esmagadora e que deixará cicatrizes nas relações laborais em Portugal, e sobre isso a direita não disse rigorosamente nada de útil aos trabalhadores nem acrescentou nada que pudesse reforçar as instituições ou o quadro legal do Estado. É possível que os portugueses, na sua maioria, desconheçam também que PSD e CDS têm, nas suas esferas, organizações que alegadamente se dedicam às relações laborais e à defesa dos direitos dos trabalhadores: os TSD – Trabalhadores Social Democratas – e a FTDC – Federação de Trabalhadores Democratas-Cristãos. A greve passou, o direito a ela foi massacrado como nunca por um Governo de esquerda e a direita, que até possui estas estruturas próprias para se debruçar sobre estes temas (ou talvez só para fazer eleger alguns caciques para o Parlamento ou para estruturas da UGT), veio dizer umas coisas sobre as quais ninguém parece ter percebido nada. Pelo contrário, o tal despacho das casas-de-banho deixou a direita em alvoroço. É incompreensível.

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Mas será possível fazer com que a direita recupere dignidade eleitoral (que perdeu nas últimas Europeias) e relevância junto das pessoas (e não só nos média)? Assim para início de conversa, podia ser útil que a direita começasse por afastar os dirigentes que falam em seu nome há vinte anos. Também era capaz de ser boa ideia deixar de funcionar apenas em dois modelos: um, que espera pelo desastre financeiro do país para voltar a governar, e outro, que se limita a responder à agenda ideológica progressista da esquerda. Talvez fazer do combate à corrupção uma causa séria e digna, em vez de passarem o tempo a apontar o dedo ao PS, como se todos os corruptos do país fossem socialistas, como se o PSD não tivesse uma rede de interesses mais ou menos obscuros pelas autarquias deste país, por exemplo, como se o CDS não tivesse a pairar sobre si um tal de Jacinto Leite Capelo Rego ou como se ambos não tivessem, uns mais que outros (mais pelo sucesso que pela ambição), crescido dentro do bloco central de interesses. Quando as pessoas dizem que “são todos iguais”, é possível que saibam perfeitamente o que estão a dizer e não sejam assim tão burras ao ponto de precisarem de um iluminado qualquer que lhes explique que a corrupção mora no Largo do Rato. Talvez fosse interessante não dizer “José Sócrates” a toda a hora — porque o eleitorado, mesmo o que não é de direita, já percebeu quem é José Sócrates e o que aqueles seis anos representaram para Portugal – se se verificarem os resultados eleitorais dos últimos anos é fácil constatar, por exemplo, que centenas de milhar de eleitores fugiram do PS em 2009 e 2011 e teima em não lá voltar. Por outro lado, era capaz de ser boa ideia, também, explicar às pessoas o que pretendem fazer em relação às reformas e à Segurança Social, ao mercado de trabalho, o que pretendem fazer para criar emprego e gerar crescimento, o que pensam sobre a carga fiscal e que caminho alternativo pretendem. Que soluções têm para a falta de perspectivas que um jovem tem hoje ao sair da universidade – com excepção da emigração. Que respostas têm para facilitar o quotidiano das famílias, em termos de redes de creches, de transportes, de mobilidade, de conciliação da vida familiar com a profissional.

Por outro lado, os portugueses têm hoje na corrupção uma das suas grandes preocupações. E por corrupção entenda-se não só os grandes escândalos (BES, Sócrates, BPN, BPP, etc.) mas também os casos diários que vão surgindo nas notícias e que envolvem, à vez, os grandes (e também os não tão grandes) partidos: ajustes directos, redes de favores e influências, seja no Estado central ou nas autarquias, a demonstração cabal de que quem quer ascender social e profissionalmente tem mais hipóteses se se filiar num partido do que a trabalhar fora da máquina partidária do Estado (seja na Administração Pública, seja no sector privado).

O discurso popular que diz que os partidos são todos iguais ficou bem espelhado num estudo recente, que demonstra que os portugueses não têm esperança na resposta dos partidos ao que consideram ser os problemas do país — com a corrupção a ocupar, repito, um lugar importantíssimo na lista. É natural que se pense assim. Os partidos são hoje, por culpa da comunicação social, mais escrutinados e não há quem não conheça, ainda que superficialmente, as histórias de caciques, de carrinhas e sacos de votos, de urnas roubadas, de pancadaria, ou da total incapacidade que os partidos têm demonstrado para criar mecanismos de transparência, fiscalização e controlo das suas contas, do seu financiamento, da contratação pública, etc. Os dirigentes partidários têm ocupado boa parte do seu tempo de antena, no que a estes assuntos diz respeito, a atirar responsabilidades para o partido do lado: a corrupção é um flagelo, mas só existe nos outros partidos; a minha corrupção é boa, a deles é que é má. Ora, o eleitorado já percebeu que os partidos, por si, são incapazes de satisfazer as suas pretensões, até porque demonstram com grande afinco que também não são capazes de se renovar, de trazer não só caras novas, mas discursos novos, com vontade e capacidade de fazer diferente e de afrontar os interesses internos e externos dos próprios partidos.

A esquerda, com excepção do PCP, acha que conquistou o seu espaço junto da maioria dos corações dos portugueses — o que não é verdade — e parece viver em paz, sem adivinhar o mal que lhe tocará em breve. A direita, a lutar consigo mesma, acha, por um lado, que a sua irrelevância se explica por estar a ser pouco de direita, ou, por outro, por estar a ser muito de direita, perdida em questões de género e de casa-de-banho. Veremos, em Outubro, se estarei errado ou se é esta direita que não faz, ela mesmo, o género dos portugueses.