Para os espíritos inocentes que ainda tivessem dúvidas, o caso Pedro Nuno Santos mostrou, de forma clara e irrefutável, que este Governo de maioria absoluta de António Costa acredita, com todas as suas forças, que a propaganda é mais poderosa do que a realidade. Para responder à notícia do Observador sobre o facto de uma empresa de Pedro Nuno Santos e do pai ter feito um contrato público com o Estado, os socialistas usaram uma confusão, uma omissão, uma falsidade, um erro e uma artimanha. Utilizando esses cinco recursos da baixa política, o Governo tentou criar um nevoeiro suficientemente espesso para permitir ao ministro ganhar o número de dias suficiente para que esta polémica seja, eventualmente, consumida por outra polémica, ou por outro caso, ou por outra notícia. Esta maioria absoluta entende que, para sobreviver politicamente, só precisa de negar a realidade o tempo que for necessário para o país desistir, por cansaço ou distração.

Tendo em conta a persistente desfaçatez do Governo, talvez seja um serviço ao debate público esclarecer e desmontar esta estratégia anti-polémicas.

A confusão. O que está em causa é muito simples, mesmo que nos queiram convencer que é complicado. Tanto na anterior lei das incompatibilidades como na atual, estão previstas três situações muito diferentes:

  • Aquela em que um político detém, por si só, mais de 10% de uma empresa — aí, a sociedade não pode celebrar nenhum contrato público;
  • Aquela em que são apenas os familiares de um político a deter mais de 10% de uma empresa — aí, segundo o parecer da PGR relativo à lei antiga, a sociedade só podia celebrar contratos públicos que não estivessem na dependência do ministro;
  • Aquela em que o político detém, conjuntamente com um familiar, mais de 10% de uma empresa — aí, tal como na primeira situação, a sociedade não pode celebrar nenhum contrato público, tenha o político em causa 9%, 1% ou 0,1% da empresa.

No caso de Pedro Nuno Santos está em causa a terceira situação: o ministro das Infraestruturas tem 1% da empresa, o seu pai tem 44% e a mãe tem 5%. Não há nenhuma dúvida sobre isto, mas, na primeira resposta à investigação do Observador, antes mesmo da publicação da notícia, o Ministério das Infraestruturas tentou logo lançar a confusão dizendo duas coisas:

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  • Disse que o ministro não tem, por si só, 10% da empresa e que, por isso, não está em causa a primeira situação — claro que não está, ninguém afirmou que estava;
  • E disse que, no caso de empresas detidas apenas por familiares, a contratação pública só estava proibida, segundo o parecer, se fosse feita na dependência do ministro — o que é verdade, mas não é relevante, porque também não é essa a situação de Pedro Nuno Santos.

Reparem na habilidade: para contornar o primeiro ponto, o ministério refere que o ministro tem uma participação, mas de apenas 1%; para contornar o segundo ponto, esquece a participação de 1% do ministro. Tudo isto para fazer de conta que não sabem que há uma terceira situação prevista na lei — precisamente aquela que se aplica ao ministro e que o deixa em dificuldades.

A falsidade. Esta confusão tem por objetivo dar credibilidade a uma falsidade: o ministro Pedro Nuno Santos argumenta que um parecer da Procuradoria sobre a lei anterior diz respeito à sua situação e o coloca dentro da legalidade. Nenhuma das duas coisas é verdade. Como o parecer é sobre a situação em que são apenas os familiares de um político a deter mais de 10% de uma empresa, e como no caso do ministro a empresa é detida, “conjuntamente”, por familiares e pelo próprio ministro, então o objeto desse parecer não se aplica ao processo do governante. Ou seja: Pedro Nuno Santos defende-se com um parecer que não o defende.

A omissão. No dia a seguir à publicação da notícia do Observador, o ministério de Mariana Vieira da Silva veio tentar defender o ministro Pedro Nuno Santos através de uma nota à comunicação social. Trata-se de um documento oficial da Presidência do Conselho de Ministros — e desafia a credulidade de qualquer pessoa que um papel com o selo do Estado português possa ser escrito de forma tão enganadora.

Naquela nota, comportando-se com um misto de infantilidade e prestidigitação, o Governo, para tentar inocentar Pedro Nuno Santos, só fala em dois dos três impedimentos existentes na lei:

  • Fala da situação em que um político detém, por si só, mais de 10% de uma empresa;
  • E fala da situação em que são apenas os familiares de um político a deter mais de 10% de uma empresa.

Já reparou no truque, certo? O comunicado oficial omite o terceiro impedimento que consta da lei, precisamente aquele que está em causa com o ministro: omite a situação em que um político e um familiar detêm, “conjuntamente”, mais de 10% de uma empresa. Mariana Vieira da Silva iliba o seu colega Pedro Nuno Santos daquilo que não está em causa e deixa de fora da sua nota à comunicação social a parte da lei que queima o ministro.

O erro. Além desta omissão, o comunicado da Presidência do Conselho de Ministros tem um erro flagrante. Não é um erro inocente — é um erro que cumpre um propósito. Como vimos, o ministro Pedro Nuno Santos usa em sua defesa um parecer sobre a lei anterior (mesmo que, na realidade, esse parecer não o defenda). Ora, para manter a validade desse parecer, é preciso argumentar que nada mudou. Por isso, no comunicado da Presidência do Conselho de Ministros escreve-se isto: “Ainda que o parecer tenha sido emitido na vigência da Lei n.ª 64/93, de 26 de agosto, a Lei n.º 52/2019 de 31 de julho, que a substituiu, não alterou as disposições à luz das quais foi emitido o referido parecer do Conselho Consultivo da PGR, que assim mantém plena atualidade”.

Só há um pequeno detalhe: é que a lei nova mudou mesmo. E mudou, precisamente, na situação que é analisada pelo parecer, que é a que diz respeito a empresas detidas exclusivamente por familiares de políticos. A lei anterior dizia isto: “Ficam sujeitas ao mesmo regime [de proibição de contratação pública] as empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva nas condições do artigo 2020.º do Código Civil”. E a lei atual diz isto: “O regime referido no n.º 2 [de proibição de contratação pública] aplica-se ainda aos seus cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, em relação aos procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.” Ou seja: ao contrário do que diz o Governo, a lei mudou — e mudou muito. Por um lado, reduziu o número de familiares abrangidos pela proibição de contratação pública. Por outro lado, instituiu na lei que essa proibição apenas vigora para contratos que estejam na esfera de influência do ministro. Mas vou repetir: isso só se aplica quando está em causa uma empresa detida apenas por familiares — não é isso que acontece no caso Pedro Nuno Santos.

A artimanha. Aliás, a lei mudou tanto que até é mais favorável a uma empresa que fosse detida apenas pelo pai de Pedro Nuno Santos. Segundo a lei anterior e o parecer da Procuradoria que a interpreta, antigamente uma empresa que fosse só do pai do ministro poderia ganhar qualquer concurso público com apenas uma exceção: esses concursos públicos não podiam ser lançados na esfera de influência do seu filho ministro. Com a nova lei, até essa excepção desaparece para os ascendentes do ministro, ou seja, para o seu pai — mantém-se apenas para “cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens” ou para “a pessoa com quem viva em união de facto”. Se a nova lei até reduziu o número de impedimentos a que estão sujeitos os políticos e as suas famílias, então porque é que Pedro Nuno Santos prefere usar em sua defesa um parecer da Procuradoria em vez da legislação atual? Simples: porque é mais fácil lançar a confusão com um documento de 38 páginas que poucos irão ler do que com 10 linhas de uma lei que qualquer um pode ler num minuto.

Chegados ao final desta deprimente história, sobra uma dúvida intrigante. Se o Governo tem tanta certeza de que Pedro Nuno Santos não fez nada de mal, porque é que foi à gaveta dos truques políticos buscar uma confusão, uma omissão, uma falsidade, um erro e uma artimanha? Eu tenho um palpite: quando se distorce assim a realidade é porque se tem medo da verdade.