A tendência recente para procurar com o telefone objectos inexistentes nas florestas e no património construído (e assim causar quedas, decepções e crimes) não basta para mostrar a decadência do género humano, que conhece desde os tempos bíblicos essas três possibilidades. É mais preocupante o entusiasmo que um número cada vez maior dos seus membros tem por aquilo que na imprensa se refere como aldeia global.

Quando se ouve ‘aldeia global’, a maior parte das pessoas presta atenção apenas a ‘global.’ A primeira coisa que se deve dizer acerca da aldeia global, no entanto, é que é uma aldeia. Uma aldeia, ao contrário de uma cidade, de uma vila grande, ou aliás de um deserto, é um lugar onde a forma principal de relação humana é a bisbilhotice. Em qualquer aldeia a obsessão é a roupa branca, ou seja, a roupa interior; e por isso o principal assunto é a roupa suja. Na aldeia global o grande tema é o interior das pessoas: e o maior interesse é a sua sujidade.

A aldeia global atrai idiotas, oficialmente no sentido original do termo. A palavra ‘idiota’ significava na Grécia antiga ‘cidadão considerado na sua individualidade.’ Este conceito de idiotia está na origem do conceito moderno de pessoa humana. O conceito moderno de pessoa humana sugere que uma pessoa humana é digna porque o seu interior é diferente do das outras pessoas. Da parte de fora todos somos iguais; da parte de dentro, porém, somos todos idiotas, porque dentro de cada um de nós se passam, pelo menos em teoria, coisas diferentes. Não há assim contradição na palavra de ordem moderna ‘todos idiotas, todos iguais.’

Há pouco a fazer quanto à nossa idiotia. Mas parece que aquilo em nós é irremediável se torna sombriamente proeminente quando é teletransportado, em particular por jovens, para uma aldeia global. Na aldeia global, a principal actividade dos idiotas é falarem do que têm dentro de si, isto é, da sua idiotia; e anunciarem-no a todos os outros aldeões com uma constância de propósito que tradicionalmente era usada para espalhar insinuações acerca dos outros. A actividade característica dos idiotas da aldeia global consiste pois em espalhar boatos acerca de si próprios.

A maneira como as pessoas espalham boatos acerca de si próprias na aldeia global exige descrições daquilo que acham, daquilo que fazem, e daquilo que lhes acontece. Dá-se porém o caso de todos os aldeões acharem sensivelmente as mesmas coisas, e fazerem as mesmas coisas; e de lhes acontecer sensivelmente as mesmas coisas. Os boatos que espalham sobre si são por isso muito parecidos entre si; e indicam que o que se passa dentro dos seus autores é muito parecido. Nesse caso a aldeia global será ainda povoada por idiotas, embora já não no sentido original do termo.

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