Eram os anos 70 no profundo sudeste londrino. Pela rua fora, as luzes dispersas intercalavam entre o profundo breu e a luminosidade. Algures, ouvia-se, oriundo de uma cave, um barulho estridente. Parecia que alguém estava a soldar a noite toda, mas esse som não chegava a perturbar a abafada noite no subúrbio londrino, pois a chuva forte, típica do Reino Unido, abafava o som. Perto de uma placa pendente por um parafuso lia-se “Lewishoot”. Alguém teria riscado o nome de Lewisham. Havia ao lado dessa placa mais um dos típicos prédios de tijolo da época, mas, em vez de escadas para o piso superior, estas pareciam encaminhar-nos ao submundo.

Algures nesse piso, onde os decibéis aumentavam e se ouviam fortes guitarradas e batidas punk, encontrava-se um rapaz magro, com o cabelo castanho-claro que desenhava o formato de um ouriço. O seu nome era Sid, e ele encontrava-se em frente a um urinol. O etanol que corria em grande volume pela sua corrente sanguínea mantinha-o num estado de equilíbrio no meio daquela casa de banho imunda. Quando a vida vira um pântano à tua volta, não sabes bem nomear o que é o equilíbrio. Em frente à parede do urinol, Sid leu algo como “devemos lutar por Lewisham”. Rangendo os dentes, nervoso, pegou no cigarro, que queimava há algum tempo enquanto ele se perdia nos pensamentos, e ergueu-o em frente da sua boca. Deu uma grande passa, queimando mais um pouco do papel e juntando uma grande cinza. Enterrou o cigarro na parede e, com a cinza, desenhou um X. Pegou num marcador preto, que segurava nas calças onde deveria correr um cinto, e escreveu com raiva nessa mesma parede: “Não sei se passo dos 70s, que Lewisham morra connosco!”

Era o início e o auge do Punk no Reino Unido. Esse apogeu fugaz é emblemático da esfera Punk. Um movimento que existe para levar os impulsos ao clímax e com isso extinguir a vida num sopro. O Punk surge numa espécie de desejo de viver a vida ao máximo com parcos recursos. Ou seja, se ela for para se extinguir, pelo menos que eu tenha gozado plenamente.

E o que é que isso tem a ver com o IRS jovem? Calma, caro leitor, eu não sou Punk! Já lá vamos…

O movimento Punk não surgiu no vazio; foi consequência de algo, como tudo na vida. Essa consequência resultou da profunda crise industrial britânica dos anos 70. Antes dessa crise, a vida nos subúrbios das grandes cidades do Reino Unido era simples: ao atingir a maioridade, os jovens trocavam os estudos pela indústria, muitas vezes até antes da idade oficial, já que o ritual de passagem para a vida adulta ia além da cronologia. O jovem vestia a camisola do seu clube de bairro, integrava-se na claque, decorava todos os cânticos, acompanhado de umas cervejas, e já se considerava adulto. Estava preparado para casar, ingressar no mercado de trabalho, partilhar casa com a esposa e constituir família.

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Contudo, a desindustrialização acelerada levou ao encerramento de inúmeras fábricas e indústrias tradicionais, provocando altos níveis de desemprego, sobretudo entre os jovens. A perda de empregos nas indústrias pesadas não afetou apenas a economia, mas também teve um impacto devastador nas comunidades trabalhadoras, gerando sentimentos de desilusão, frustração e alienação, particularmente entre os mais novos. Houve um corte profundo com aquilo que era o status quo da organização social.

O punk surgiu então como um movimento de contracultura, um grito de revolta, raiva e frustração contra aqueles que destruíram os sonhos desses jovens. O sociólogo Ross Haenfler sublinha que o punk não era apenas um estilo musical, mas também um movimento cultural que refletia a insatisfação das novas gerações com essa perda do status quo. A estética crua e direta do punk, as suas letras contestatárias e a atitude “Do It Yourself” (Faz Tu Mesmo) foram respostas imediatas às dificuldades vividas pelos jovens britânicos.

O movimento Punk incorporou elementos de protesto contra o desemprego, a falta de oportunidades e a sensação de abandono por parte das instituições governamentais. As letras das canções abordavam frequentemente temas como a desigualdade social, repressão política e o desânimo face ao futuro. Além disso, a moda Punk — com as suas roupas rasgadas, piercings e cabelos coloridos — tornava-se uma forma de rejeição das normas sociais estabelecidas, enquanto afirmava uma identidade individual entre o caos económico.

O Punk incorporou o profundo niilismo da vida, através da promiscuidade, sexo desprotegido, uso de drogas pesadas, música de intervenção com incentivo da própria carne para canhão.

A voz do Punk jamais será silenciada; no entanto, a sua abordagem niilista e, muitas vezes, destrutiva para com a vida foi desafiada com o surgimento do movimento Straight Edge, que trouxe uma filosofia mais “limpa” para o âmago do Punk, tal como uma flor de lótus que brota num pântano. Este movimento começou como uma subcultura dentro do Punk, com jovens apaixonados pela música e estética do Punk, mas que rejeitavam os comportamentos autodestrutivos, como o consumo de álcool, drogas e sexo casual. Com o tempo, esses jovens compreenderam que era possível apreciar a estética do Punk sem aderir à sua filosofia. Aos poucos, tornaram-se uma contracultura dentro do próprio movimento Punk, apelando a uma vida mais equilibrada e saudável. Claro que vários fatores contribuíram para o surgimento dos Straight Edge, mas não tenho espaço para os discutir em detalhe aqui. No entanto, uma ligação interessante que raramente se faz é entre o aparecimento dos Straight Edge nos EUA e o arranque da prosperidade económica nos anos 80, especialmente na segunda metade da década, com as medidas conhecidas como Reaganomics.

Essa prosperidade da classe média trouxe certamente benefícios aos jovens, que passaram a encarar o futuro com menos pessimismo e puderam optar por cuidar de si e dos outros, graças à renovada esperança de viver. Confrontar o futuro de maneira confortável ajuda a erradicar o medo dos jovens em avançar. Digo isto porque, enquanto psicólogo, tenho vindo a especializar-me no trabalho com jovens adultos, e o que mais encontro no consultório são jovens que não querem crescer. Acredito que este fenómeno reflete a síndrome do século XXI, que carinhosamente apelidei de Síndrome de Peter Pan. Existem várias razões que explicam a Síndrome de Peter Pan, e um dia publicarei sobre elas. No entanto, uma das razões mais evidentes é a económica. Muitos pais chegam desesperados ao consultório porque os seus filhos parecem não querer crescer. Por vezes, namoradas insatisfeitas também (visto que esta síndrome é significativamente mais comum entre homens). Embora a psicoterapia ajude os jovens a identificar e a superar os bloqueios que impedem o seu desenvolvimento, vivemos hoje um tempo em que o fator socioeconómico já não é um protetor.

É interessante reparar que, na essência, o moderno ‘Peter Pan’ não age de forma muito diferente de um Punk. Apesar de não partilhar um visual tão excêntrico, ele partilha o desdém pela responsabilidade, não adota uma postura humilde e, apesar da sua dissimulada extroversão, é um profundo pessimista em relação ao futuro. Por isso, normalmente vive com a expressão Carpe Diem a pulsar no seu peito.

Consequentemente, pode até ser gastador, comprando coisas aparentemente supérfluas, como telemóveis, grandes viagens, um bom carro, entre outros. Acaba por se endividar, vivendo ainda em casa dos pais. Porquê? A mentalidade é a mesma do punk: é preferível viver já o possível a poupar para o imprevisível. Eles sabem bem que a sociedade mudou, mas a mentalidade financeira, social e política não acompanhou essas mudanças. Sabem, no seu íntimo, que não são mais privilegiados do que as gerações anteriores, mas estão mais certos daquilo que não querem. Por exemplo, antigamente, muita gente casava como uma forma de escapar à realidade que vivia em casa dos seus progenitores. Juntavam-se e, a dois, com muito esforço, construíam a sua casa e, por vezes, com sorte, um lar.

Hoje, as relações são fugazes e líquidas. Não existem comunidades, apenas redes sociais — redes de apoio temporário, e eles sabem disso. Tal como a questão do IRS jovem, da ajuda à habitação e de outras medidas que o governo tenta implementar. Se houvesse comunidade, haveria fé nestes jovens. Talvez houvesse confiança de que eles fariam a melhor gestão para arrancar com a sua vida, e, com isso, colocariam os serviços a funcionar. Todos poderiam rentabilizar sem a intervenção do Estado, e o Estado poderia cobrar mais à frente, como sempre faz. Um exemplo disso é o direito de preferência sobre os imóveis (algo que, até hoje, nunca entendi o propósito). Esse direito tem um custo de 15 euros — um processo completamente automático que enche os bolsos dos municípios e do Estado. Se, em média, se vendem cerca de 150 mil casas por ano, o Estado poderá arrecadar 2.250.000 euros numa despesa que, na verdade, não lhe custa nada.

Sabemos que a falta de incentivos para os jovens fazerem a transição para a sua independência financeira é um flagelo para a saúde mental. Porque é que medidas como esta não são amplamente discutidas pelos seus benefícios para a paraeconomia? Paraeconomia, sim! A paraeconomia é um conceito que se refere a atividades económicas que acontecem à margem ou fora do mercado tradicional e do sistema económico formal. Ela engloba formas de produção, troca e consumo que não são reguladas, fiscalizadas ou contabilizadas pelo Estado ou por instituições económicas formais.

Em suma, apesar da especulação do mercado, acredito que a conjugação de duas medidas — apoio à habitação e IRS jovem — pode ser um forte incentivo para muitos jovens reduzirem a sua ansiedade e, com a devida psicoeducação e literacia financeira, apostarem na sua independência financeira. Ao reduzir a carga fiscal, o governo pode proporcionar aos jovens salários mais competitivos no início da carreira (não para ganharem mais do que os mais velhos, mas para organizarem a sua independência financeira). Procurando reter talento, algo que também representa um custo significativo para os cofres do Estado, evita-se que engenheiros, médicos, psicólogos e cientistas tenham de imigrar à procura de melhores oportunidades de vida. Além disso, promove-se um estímulo ao consumo e uma economia circular, onde o Estado também recupera riqueza, mas sem a necessidade de gerir ou selecionar modos de vida.

É claro que isto gera uma linha ténue de separação entre duas frações problemáticas: os jovens antes dos 35 anos e os (velhos?) pós 35 anos. Sem desvalorizar as dificuldades dos jovens pós-35 anos, creio que o nosso eterno “complexo de Abel e Caim” muitas vezes nos impede de olhar para os mais afortunados (neste caso, os menores de 35 anos) e deixar que essa bênção recaia sobre eles. Sei bem, por experiência própria, o que é não ser agraciado por uma dessas medidas recentemente, devido à diferença de apenas um mês. No entanto, sou um eterno otimista no mérito dos arrojados. Talvez, no futuro, isso permita beneficiar todos de forma mais equitativa.

Por fim, caro leitor, lamento ter testado a sua paciência com este artigo, ao escolher um título talvez um pouco enganoso para despertar a sua curiosidade. Contudo, tenho a certeza de que, se leu até aqui, algo de benéfico deve ter ficado. O objetivo deste artigo é alargar a discussão para que possamos refletir sobre as soluções para este problema, que afeta não só o presente e o futuro do nosso país, mas também a vida de todas as gerações (não apenas os jovens).