Sei que existe uma grande preocupação em torno dos resultados que o Chega alcançou nestas eleições. Compreendo os motivos e partilho de alguma consternação. Com isto não me refiro à celeuma levantada por alguns em relação à idoneidade democrática de tal partido.

Até porque não acho justo levantar tal suspeita. Para explicar sem incorrer em ‘whataboutismo’, o facto é que o Chega opera nos limites democráticos do espectro da direita, assim como o BE e o PC atuam na esquerda. Há argumentos robustos que suportam esta visão. Vamos então a um rápido ‘quem é quem?’: de um lado, temos um partido de tendência nacionalista e autoritária; do outro, partidos que preconizam a saída de Portugal da União Europeia — ainda assim, candidatam-se consistentemente às europeias — e que louvam a era Soviética. Consegue descobrir a quem me refiro?

Contudo, a essência deste artigo não reside em validar a idoneidade democrática de qualquer partido, mas sim em explicar a razão subjacente à tese apresentada no título. De forma simples e direta: o Chega carece de estrutura e quadros qualificados para garantir um desempenho eficaz no parlamento. E esta preocupação ultrapassa a questão da qualidade das suas intenções. O Chega, desde o seu início, tem sido caracterizado por depender excessivamente de uma única figura, ilustrando perfeitamente o ditado de que ‘a cada cabeça sua sentença’. Em resumo, o Chega pode ser definido em duas palavras: André Ventura.

Ventura sabe bem disso. Porém, para erguer a sua ‘igreja’ precisa dos seus apóstolos. E desta feita conseguiu mais do que triplicá-los.  Em todo o caso, com base nos resultados eleitorais, é possível extrair algumas conclusões relevantes.

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Foi preciso aguardar pelos resultados finais para concordar em algo com Pedro Nuno Santos: quem votou no Chega não é necessariamente xenófobo ou racista; mas, sim, descontente. No entanto, parece que foi esquecido que, durante a sua campanha eleitoral, ele próprio serviu inadvertidamente aos interesses do Chega. Ao rotular o partido com essas mesmas acusações, em vez de se focar em apresentar soluções concretas para o país, acabou por entregar, ingenuamente, uma parte do seu eleitorado ao Chega, através de uma retórica baseada na exclusão e polarização. Pareceria improvável que alguém de esquerda votasse no Chega, mas o Alentejo, tradicionalmente de extrema-esquerda, mudou radicalmente, adotando posições da extrema-direita. Isso deve-se ao facto de o caos ser o combustível de partidos como o Chega. Optar por jogar o jogo do Chega é decidir entrar voluntariamente num buraco negro.

Embora diga isto, é um pau de dois bicos jogar com o Chega. Porque tanto a sua exposição, tal como a falta dela, é tratada por André Ventura com mestria. O seu currículo de comentários desportivos concedeu-lhe a capacidade de se vitimizar tal e qual um jogador de futebol a rolar pela relva quando quer topar um livre direto. Por isso a estratégia de pessoas, como Ricardo Araújo Pereira, de não entrevistar André Ventura, não enfraquece o Presidente do Chega. Pelo contrário, só o posiciona ao lado dos descontentes e vitimados pelo dito sistema.

Portanto, a minha tese é direta: a autêntica derrota de André Ventura e do Chega apenas ocorrerá se conseguirem vencer as eleições legislativas. Só então terão de enfrentar a realidade de governar, sem poderem atribuir a culpa a outrem. Até esse momento, continuarão a agir como parasitas dos erros e falhas dos principais partidos, alimentando-se da sua energia.

Após expor a minha tese, questionam-me sobre se André Ventura merece crédito pelo crescimento do Chega. Reconheço que ele tem a legitimidade, mas questiono o mérito. Na realidade, o que fez foi replicar modelos de partidos semelhantes de outros países europeus. Quando comparado com o Vox, por exemplo, mencionam que nem mesmo este partido alcançou um destaque tão significativo. A minha resposta é que a realidade espanhola difere da portuguesa. Enquanto psicólogo, observo que o espanhol, ao sentir-se insatisfeito, tende a expressar-se nas ruas, liberta a sua frustração, e regressa a casa aliviado.

Na perspetiva de analista junguiano, analiso que o inconsciente coletivo do povo espanhol é tudo, exceto homogéneo. Está fragmentado entre vários regionalismos. O espanhol não liga à ‘Vox’ nacional, quando prioriza o regionalismo em detrimento do nacionalismo.

O povo português caracteriza-se por uma certa repressão inata, vivenciando o arquétipo do eterno retorno: a espera pelo salvador perdido, Dom Sebastião, e a promessa do Quinto Império. Por um lado um povo de operários sonhadores, que por outro está em conflito permanente com os descendentes do elitismo burguês que, para preservar seu estilo de vida boémio, abraçaram o anarquismo e o comunismo. Esta fusão de realidades, aliada à erosão da confiança nas instituições tradicionais e à aspiração de transcender as limitações impostas pela própria mentalidade, alimenta o apetite por políticas extremistas.

Refiro-me a este apetite por políticas extremistas observando que o cenário poderá mudar já amanhã. Tudo dependerá da habilidade política da direita. Portanto, o Chega deve evitar o erro de Ícaro, procurando voos demasiado altos. Se quiser subir demasiado e puxar o tapete à AD, poderá cair por terra até ao seu desaparecimento.

Nada é inédito na política. Estamos, possivelmente, a assistir a uma repetição de episódios históricos, tal como aquele ocorrido entre o Partido Renovador Democrático (PRD) e o PSD de Cavaco Silva nos anos 80. Nessa altura, o PRD causou uma instabilidade política que, ironicamente, culminou na concessão da primeira maioria absoluta em Portugal ao PSD de Aníbal Cavaco Silva.

Contudo, é essencial tirarmos lições da história. Por essa razão, embora André Ventura sirva como um eco do descontentamento dos portugueses, o meu ponto de vista distingue-se bastante da análise que um dia Carl Jung fez de Hitler. Enquanto o descontentamento na Alemanha de Hitler emergiu como um fenómeno com dinâmica própria, em Portugal, sob Ventura, manifesta-se mais como a persona (ou máscara) de um povo marcado por feridas profundas. Esta reflexão foi inadvertidamente reforçada por um sketch de Pierre Zago, que, de forma humorística, validou uma das minhas teorias: quem vota no Chega, vota com uma espécie de orgulho revoltado. No entanto, baseado na minha experiência clínica, sugiro que este comportamento não passa de uma expressão mal disfarçada de um orgulho ferido.