Em junho deste ano, o jornal Expresso publicou uma grande sondagem, muito elucidativa sobre o “estado de alma” dos portugueses, antes, portanto, de eclodir a actual crise política, cuja responsabilidade o ainda primeiro ministro teima em endossar a Marcelo Rebelo de Sousa, por ter decidido aceitar a sua demissão e dissolver o parlamento.
Vale a pena recordar que, nesse estudo, baseado numa amostra alargada a nível nacional, os principais resultados eram simplesmente arrasadores para o “legado” de António Costa e do governo socialista que, ironicamente, os candidatos que disputaram a sua sucessão elogiaram, vezes sem conta, durante a campanha, cujo desfecho deu a vitória a Pedro Nuno Santos.
Podia então ler-se que 91% dos portugueses reclamavam dos impostos sobre o rendimento; 87% estavam insatisfeitos com o combate à corrupção; 88% estavam desagradados com a política da habitação; 78% mostravam-se descontentes com o combate à criminalidade; 74% lamentavam a falta de qualidade do Serviço Nacional de Saúde; 68% reprovavam a educação pública; e 90% achavam a riqueza mal distribuída.
Ou seja, tratava-se de um verdadeiro compêndio de decepções ou de um retrato sombrio bem explícito sobre a percepção dos portugueses em matéria de políticas públicas.
Curiosamente, segundo o mesmo estudo, assente num trabalho de campo realizado por uma vasta equipa coordenada pelo ICS com o ISCTE, concluía-se que os inquiridos confiavam mais em Marcelo, na polícia e nas Forças Armadas, e menos nos partidos, governo, parlamento e igreja.
Se Pedro Nuno Santos tivesse presente esta sondagem, decerto teria sido mais contido quanto ao “legado” de Costa e, talvez, nem se atrevesse a convidá-lo (ou a usá-lo?…) como “cabeça de cartaz” na campanha eleitoral, já a desenhar-se no terreno para as legislativas antecipadas.
A validar o significado mais profundo deste trabalho do ICS-ISCTE, o “legado” de Costa é um “activo tóxico”, que a nova liderança socialista deveria evitar, por uma questão de bom senso e de pudor.
O descontentamento subjacente à sondagem, identificando o mal-estar dos portugueses, ganhou mais corpo há dias, ao ser divulgada pelo INE a informação de que o PIB, expresso em paridade do poder de compra, coloca Portugal no 16º lugar entre os 19 países da zona euro e em 20º na União Europeia a 27, em 2022, algo que está longe de ser abonatório.
Fomos ultrapassados por países que chegaram há menos tempo à União e com economias, à partida, muito piores do que a nossa. E dos restantes, pelo menos a Hungria a Roménia não tardam em deixar-nos também para trás.
Graças a oito anos perdidos, desde que começou a actual fase do PS, amiga do radicalismo esquerdista, o País foi descendo a fasquia, como potencial candidato à “lanterna vermelha” da Europa.
Um “legado”, portanto, pouco honroso para António Costa, que promete “não ir andar por aí”, já que está “muito disciplinado” e interessado em colaborar com o novo líder em tudo aquilo que ele quiser.
Claro que tanto Pedro Nuno como José Luís Carneiro fizeram parte do governo – e Carneiro ainda o integra, em formato de gestão – e, como tal, não podem alhear-se dessa pertença.
Mas, ao menos, teria sido útil distanciarem-se e assumirem uma vontade de mudança, como se observou em Carneiro, afastando-se do seguidismo patológico de Pedro Nuno, não obstante este ter-se demitido com “culpas no cartório”, após o afastamento de Alexandra Reis – a meteórica secretária de Estado do Tesouro –, indemnizada antes, como ex-administradora da TAP, com o seu aval, via WhatsApp.
Uma trapalhada, a somar a outras, designadamente, com a ex-CEO da companhia, Christine Ourmière-Widener.
De facto, desde o anúncio rocambolesco da localização do futuro aeroporto de Lisboa – à revelia do primeiro ministro –, até às histórias atribuladas, tanto em relação à TAP como à ferrovia e à CP, a crónica política de Pedro Nuno é um chorrilho de decisões impreparadas, se não mesmo levianas.
A mesma impreparação ficou demonstrada, aliás, no discurso improvisado de vitória, de uma deprimente “pobreza franciscana”.
Quando era expectável que Pedro Nuno enunciasse as grandes linhas orientadoras da sua acção, confirmou-se um deserto de ideias. Um imenso vazio que Luís Montenegro sintetizou bem – “espreme-se, espreme-se e não sai nada”. Tal e qual.
Além do radicalismo de esquerda, os portugueses pouco mais podem esperar do novo líder do PS, que vai a votos com a “geringonça” no coração, o que é uma “bênção” para Montenegro, se souber capitalizar a seu favor as contradições e os disparates do seu fogoso e recém-eleito adversário.
Pedro Nuno esforçou-se sempre por não parecer radical, imagem que traz colada à pele, desde que em 2011 garantiu a quem o quis ouvir, estar-se “marimbando” para “os bancos alemães que nos emprestaram dinheiro nas condições em que nos emprestaram” e para que “nos chamem irresponsáveis”. Disse-o com a irresponsabilidade para quem já era, à época, vice-presidente da bancada parlamentar socialista.
O mais espantoso é que o mesmo homem que se achava capaz de por as pernas dos banqueiros alemães a tremer, teve o desplante recente de afirmar, sem se rir (ou a rir-se dos portugueses) que “nunca fui esquerdista. Fui sempre social-democrata”.
Um verdadeiro “flic-flac” ideológico, como lhe chamaria José Luís Carneiro, em entrevista a este jornal, um moderado de esquerda, fiel às suas convicções e origens, talvez herdeiro dos ensinamentos da época áurea de Mário Soares.
Ambos deveriam ter protagonizado um frente-a-frente televisivo, como aconteceu entre os dois Antónios, Costa e Seguro, em 2014, se não fosse a “nega” de Pedro Nuno, que temeu ser confrontado com os seus “ziguezagues”, e o debate ser-lhe fatal para as suas aspirações.
A vitória de Pedro Nuno é um aditivo para o esquerdismo militante do PS, enquanto Carneiro marcou pontos e ganhou notoriedade, importante em relação ao futuro, num horizonte onde deverá constar, também, Fernando Medina – supostamente, o favorito de Costa, se outro fosse o enquadramento da sua sucessão.
Mas a disputa entre os dois principais candidatos teve apoios inesperados, tanto de um lado como do outro. Quem diria, por exemplo, que Francisco Assis ou Sérgio Sousa Pinto estariam ao lado de Pedro Nuno, mandando “às malvas” a coerência?
Ou como explicar os apoios a José Luís Carneiro de Augusto Santos Silva ou Fernando Medina, como se estivessem ali por engano?
Eleito Pedro Nuno é óbvio que o PS ficará, doravante, mais “colado” ao Bloco de Esquerda e ao PCP, com a certeza antecipada de que Luís Montenegro procurará explorar, até à ida às urnas, as incongruências e as vulnerabilidades do novo secretário geral socialista. E não lhe faltarão.
A ansiedade de Pedro Nuno em apresentar-se ao partido como alternativa para António Costa não começou agora e tem pergaminhos. Basta recordar o congresso socialista de 2018, quando Costa sentiu necessidade de “encostar às tábuas” o inflamado correligionário, lembrando-o, um bocado à bruta, de que “não meti os papéis para a reforma”. Algo que tem vindo agora a repetir noutro contexto.
A realidade é que Pedro Nuno se apresta para exibir Costa como um trunfo, durante a campanha para as legislativas. Se o eleitorado tiver um módico de memória, o estratagema ser-lhe-á fatal.
A menos que vingue o “discurso do medo”, para assustar os incautos e os dependentes do Estado, desde o funcionalismo aos reformados e pensionistas, como estratégia para apagar uma governação de má memória.
No meio de tantas incertezas, só faltava mesmo Marcelo Rebelo de Sousa brindar os portugueses, em vésperas de Natal, com a “metáfora” de que Costa tem tantas condições para presidir ao Conselho Europeu como para ser candidato à sua cadeira em Belém.
Ao envergar novamente o fato de analista político, ainda adiantou que para a liderança do PS o seu candidato favorito seria … António Costa, o que deixou o visado “muito honrado”.
Conviria que o Presidente, que já precisou de “emendar a mão” em não poucas ocasiões, se retirasse do “mercado de comentadores” e aprendesse a cingir-se às exigências do seu cargo, sem desbaratar o prestígio da função presidencial em “jogos florais”, e sem estar preocupado com os indicadores de popularidade. Se não for pedir-lhe demais, claro…