Macbeth dizia (numa circunstância difícil, é verdade) que a vida é “uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, nada significando”. E Stephen Dedalus, pela sua parte, sustentava que a história era um pesadelo do qual ele tentava acordar. Ora, há momentos em que nos apetece competir com as grandes individualidades. Não há mal particular nisso: a loucura mansa não afecta os outros e o ridículo das falsas frases imorredoiras não estraga a vida de ninguém. Por isso, aqui vai a minha tentativa de emulação: a história é um caleidoscópio nas mãos de um bêbado sofrendo de delirium tremens.
Escrevo isto tendo à minha frente a um mapa da Europa. Toda a gente gosta de mapas. Se prestarmos atenção à história dos mapas, temos tudo lá: as marcas do conhecimento, da beleza (há mapas que são obras de arte, e mesmo os mais frustes têm o seu encanto) e do poder. Tudo, ou quase tudo: falta a transformação. Os mapas são como os tratados de paz e as grandes conferências internacionais (Viena, Versalhes ou Potsdam): fixam o mundo, que se vai mudando no momento mesmo em que eles são debatidos e assinados. Para a transformação, temos outra coisa que não os mapas: os caleidoscópios.
Suponho que toda a gente gosta de caleidoscópios, pelo menos da memória da infância que deles em nós sobrevive. Junto ao mapa que estou a olhar, tenho um. Agita-se um pouco e a configuração dos pequenos vidrinhos muda subitamente. A beleza não falha. De resto, “caleidoscópio” tem dentro de si a palavra grega para “belo”: kalos. A história humana – como a nossa história individual, de resto – está cheia dessas mudanças de configurações. Com a diferença que o resultado de cada agitação não é forçosamente belo. Às vezes, o horror e a fealdade resultam da agitação.
No mapa da Europa que tenho à minha frente, fixo o meu olhar num ponto preciso: um pequeno território junto ao Báltico, encaixado entre a Polónia e a Lituânia: Kaliningrado. O nome vem de Mikhail Kalinin, presidente do Soviete Supremo no tempo de Estaline e conhecido por ter enviado a sua mulher para o Gulag. Mas não se chamou, obviamente, sempre assim. O historiador Norman Davies, nesse livro de verdadeira história caleidoscópica que é Vanished Kingdoms, conta as aventuras desse lugar, desde os remotos tempos dos prusai, os nativos da Borussia (nome latino – como nos clubes de futebol alemães) até aos tempos de Kaliningrado, passando pelo domínio dos Cavaleiros Teutónicos, da Polónia e dos Hohenzollern.
É uma história fascinante. O tempo que mais conta para nós, a configuração que se tornou mais decisiva, é certamente aquele em que Königsberg (assim se chamava Kaliningrado) era a capital da chamada Prússia Oriental. Um tempo longo. Foi em Königsberg que nasceu e sempre viveu, escreveu e ensinou Kant. Foi aí que nasceu também E. T. A. Hoffmann, escritor fantástico e um dos mais subtis críticos musicais do século XIX. Foi aí igualmente onde nasceu o grande matemático David Hilbert e onde cresceu Hannah Arendt. Depois, o bêbado que tem nas mãos trémulas o caleidoscópio da história fez chegar os nazis (que nunca ali ganharam eleições – mas não precisavam) e, em 1945, os russos, que acabaram com a antiga cidade, ou com o que tinha dela sobrado dos bombardeamentos da R.A.F.
Anne Applebaum conta, em Between East and West, o que aí viu no princípio dos anos 90 do século passado. Conta sobretudo a fealdade, típica do império soviético, da nova cidade construída sobre as ruínas da antiga. Kakos, o mau e o feio, substituiu kalos, o bom e o belo. E conta a quase completa erosão da memória do passado alemão. Depois da terrível batalha de 1945, os nativos foram mortos ou expulsos e substituídos por russos. Os poucos que ainda restavam quando Applebaum lá passou ocultavam a sua origem. Era como se aquilo sempre tivesse sido russo. O túmulo e a estátua de Kant são, parece, regularmente vandalizados. Para a alucinação retrospectiva da história, era “russófobo” – mais dia, menos dia, temos o sr. Lavrov a repeti-lo. E a cidade onde escreveu A paz perpétua alberga mísseis nucleares russos. O bêbado que tem nas mãos o caleidoscópio da história faz destas coisas.
É claro que a mudança das configurações guarda, à sua maneira, uma memória. Há uma espécie de memória caleidoscópica, que vale também, de resto, para a nossa existência pessoal. Mas se neste último caso ela é, apesar dos ocasionais recalcamentos, inevitável, em história cabe aos historiadores reconstrui-la. A história é, por essência, morfológica: lida com a transformação das formas, um ponto em que Spengler acertou, quaisquer que tenham sido os seus vários erros. Penso muitas vezes nisto, porque essa é uma das razões pelas quais nunca poderia ter sido um historiador. Mesmo que um dos livros que mais me impressionou na adolescência tenha sido um livro de história – A história começa na Suméria, de Samuel Noah Kramer –, rapidamente percebi que aquilo não era para mim. Não conseguia lidar inteligivelmente com a sucessão de migrações, deslocações e transformações caleidoscópicas. Daí ter emigrado muito precocemente para a filosofia, e, dentro da filosofia, para o estudo dos sistemas filosóficos, que são mundos autónomos perfeitamente coerentes e fechados sobre si, cada um dispondo de uma realidade própria que nos cabe descobrir.
Resta que estas coisas continuam a fascinar-me. A vida, de resto, lembra-as constantemente. A nossa e a do mundo. O destino da Borussia guarda ainda muitas surpresas, algumas das quais – não forçosamente boas – nos podem afectar directa ou indirectamente. O que o mapa não nos diz, diz-nos, e continuará a dizê-lo, o caleidoscópio que o bêbado tem nas mãos.