Em Da Direita à Esquerda, António Araújo escreveu que «[p]revalece, seja na esquerda, seja numa parte substancial da direita, a ideia de que a ideologia popular é tendencialmente «atrasada», «básica», «arcaica». (…) Por muito que isso custe às vanguardas, o povo está aos domingos nos hipermercados, a fazer compras, e informa-se através do Correio da Manhã ou do Record, diverte-se – e sofre – nos estádios de futebol, caminha até Fátima em horas de aflição, enterra os mortos com o conforto dos sacramentos, sonha em ter a vida das estrelas da Lux ou da Nova Gente, discute a fortuna e a vida sexual de CR7, acompanha com fervor e brio as novelas da TVI e, para horror das elites, é, ele próprio, protagonista da “neotelevisão”».

O apontamento de Araújo regressou-me à memória depois de ter lido As três mortes de Lucas Andrade, romance de estreia de Henrique Raposo, um livro que me aguçou outro tipo de recordações, mais pessoais, e que, até certo ponto, funcionou para mim como um espelho – e que, de alguma maneira, confirma a tendência de que há um lado silencioso da sociedade portuguesa que começa a ter relevância literária através de algumas vozes (Raposo, Bruno Vieira Amaral, Djaimila Pereira de Almeida), mas que não tem peso político e mediático.

O ponto é simples: às portas de Lisboa, para norte e para sul, há uma multidão em movimento que é, ao mesmo tempo, política e mediaticamente de um silêncio esmagador. São milhões de pessoas sem rosto, de que ouvimos falar nas rádios todas as manhãs através das notícias do trânsito, que enchem as estradas, os barcos, os comboios e os autocarros, e desaguam em Lisboa diariamente, e que são normalmente notícia pela desgraça – a única altura em que os indivíduos ganham um rosto, um nome e um corpo, regra geral depois de um esfaqueamento, um homicídio, uma esquadra assaltada, centros de saúde que não funcionam ou escolas sem condições. No fundo, mantém-se o retrato das cheias de 1967, quando os meninos de Lisboa, cheios de revolução nos sonhos e socialismo no coração, descobriram que a miséria mais profunda vivia ali, paredes meias com o seu conforto, e que era dali que vinham as suas empregadas, não raras vezes violadas pelo chefe da casa ou pelo menino, coitadinho, que não podia casar virgem. Foi ali que eu cresci, foi dali que eu vim, do seio de uma família modernamente monoparental, suburbana e pós-rural, oriunda do sopé de uma serra perdida, onde os garotos andavam descalços, as mulheres urinavam nos regatos, todos sob a força do império masculino imposto pela força bruta.

Já foi o país ascendente. O país que saiu da pobreza e da miséria mais profundas e que se democratizou, que estudou e que se fez valer pela força do seu trabalho e do seu mérito, disputando ombro a ombro a dianteira da sociedade com os filhos-família, é hoje, e cada vez mais, o país sem respostas, sem oportunidades, sem esperança, sem ambição e sem representação.

As elites intelectuais, culturais, económicas e políticas da capital-que-interessa, da que tem peso e voz pública, sempre apreciaram a abstracção dos arrabaldes, da pobreza conceptual, chega-se mesmo a visitá-la, como fazem os políticos em campanha, mas não se conhece nada daquilo em termos concretos. Talvez seja por isso que se fale muito, por exemplo, no uso da bicicleta ou do carro eléctrico, excentricidades para uma maioria de gente que ganha mal e que não tem como se mover para além do automóvel ou de uma fraca rede de transportes. Talvez seja mesmo por isso que se perdem horas e horas e horas a debitar, nas televisões e na imprensa, coisas inúteis para a maioria das pessoas que estão física e psicologicamente para lá da ponte – não se estranhando, por isso, que se prefira ver a telenovela. É um oceano de distância que vai da vida das pessoas sem rosto à voz privilegiada de quem fala por elas e que só o país-que-lê-jornais conhece.

Levei anos a compreender que estar a meio da ponte pode não ser desconfortável. Quem, estando a 10 quilómetros de Lisboa, viveu a uma distância psicológica galáctica das Amoreiras, por exemplo, sabe o que é estar a meio da ponte – demasiado beto num lado, demasiado suburbano do outro. Foi, durante anos, uma espécie de baldio social, um sítio para onde se atiram os inadaptados. Mas é talvez o ponto de maior conforto e de onde se vê melhor o mundo. E a sensação que tenho deste meio da ponte é a de quem assiste a um certo tipo de guerra civil silenciosa que se vai erguendo entre elites e povo. Dir-me-ão que em Portugal isso não é possível, que estou a exagerar. Sucede que é estando a meio da ponte que se nega, por um lado, a redoma do privilégio, e, por outro lado, o revanchismo social – é a meio da ponte que o chão comum é possível, e não é por lá que a democracia se está a fazer. Pelo contrário, é para os ângulos mortos das periferias mediáticas que estão a falar os politicamente mais interessados em ter um exército de descontentes enraivecidos do que uma comunidade feita de cidadãos com esperança e tranquilidade. O país-que-lê-jornais pode dividir-se entre a esquerda e a direita, mas o país no seu todo divide-se entre os de cima e os de baixo. E não, não é a elite que tem de ir ver «o povo», como um curioso. São as portas da Lisboa privilegiada que têm de se escancarar.

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