Escrevo a presente crónica porque recentemente o termo meritocracia tem sido alvo de polémicas, queixas e injúrias. A meu ver, até de forma bastante válida, já que o conceito foi extremado por determinadas ideologias políticas que viam no mesmo o veículo da boa conduta e da moralidade boa. Todavia, existe um conjunto de inconsistências que gostaria de apontar através de um estudo de caso prático. O caso do meu irmão. Ao longo desta crónica pretendo demonstrar como o termo não é tão descabido como pretendem dar a entender. Nota prévia: convém realçar que quem não se quer maçar com a parte teórica, deve avançar para 7º parágrafo onde encontrará o caso prático.

De forma introdutória, o termo meritocracia foi popularizado por Michael Young no seu romance “The Rise of Meritocracy”. Neste romance o autor jogava com a ideia de uma sociedade utópica baseada nos princípios da meritocracia. Neste caso a meritocracia é um sistema pelo qual os indivíduos são recompensados com base nas suas habilidades, competências, inteligência e conquistas em vez do seu estatuto socioeconómico ou influências. Todavia, para o autor, a meritocracia seria uma forma de subversão e distorção de políticas que, conduzidas ao seu extremo, culminariam numa sociedade desigual. Na verdade, a inspiração do autor para o romance surge de uma situação real, ocorrida no Reino Unido do Séc. XX, onde queriam dividir alunos com base na sua inteligência. Young via esta posição como uma forma discriminativa de ensino. O receio de Young é que aparentemente a meritocracia se tornasse numa forma fundamentalista e unidimensional de olhar para a complexidade da sociedade humana e das suas desigualdades.

Até porque nós não sabemos muito bem o que pode influenciar a qualidade de ensino e a conduta dos indivíduos dentro de uma sala de aula. Martha Farah, Tom Boyce e outros autores verificaram que as crianças pobres educadas em contextos desfavorecidos têm um prejuízo no desenvolvimento do seu córtex pré-frontal, incidindo numa menor regulação das emoções, controlo de impulsos, tomada de decisões e afetação da memória operacional. Além de que existe uma maior presença de cortisol na corrente sanguínea, manifestando uma maior reatividade perante o stress. De facto, estes elementos podem afetar a qualidade de ensino e o processo de aprendizagem destes jovens indivíduos.

A meritocracia resumida a estes dados pode parecer uma forma perversa de discriminar as pessoas. Todavia, se entendermos a meritocracia como um sistema onde os indivíduos são julgados antes pelos seus talentos, ética laboral, caráter em vez da sua etnia, contexto económico e género, podemos considerar um sistema justo de distribuir oportunidades em sociedade.

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Eu acredito que essa é a base do nosso sistema social. Provavelmente uma certa ênfase no mérito e na competência fez com que nós conseguíssemos superar algumas adversidades ancestrais. Imagino que as nossas tribos primitivas privilegiassem o mais talentoso caçador para que a comunidade não passasse fome. Porém, a meu ver, a problemática não está tanto no mérito, mas na nossa habilidade de corromper os bons referenciais. Esse é o nosso primeiro pecado. A síndrome de Abel e Caim. Aquela que não permite a existência de alguém mais competente do que eu, de modo a servir de meu referencial. Quando esse alguém existe, em vez de aprendermos ativamente com ele, procuramos assassinar esse mesmo referencial.

O perigo de perdermos referenciais de mérito é ficarmos perdidos e alienados da responsabilidade pessoal, deixando esta responsabilidade às mãos de um coletivo regulador (e.g., estado). Não existe um incentivo à revelia e ao raciocínio crítico. Sendo que, a meu ver, este argumento contrapõe aqueles que apontam a meritocracia como uma forma de engenharia social. Pelo contrário, engenharia social é a ausência total de uma psique individual, de uma psique que seja incapaz de emergir do coletivo. Tento explicar isso no documentário Teatro das Sombras que irá estrear em território nacional dia 6 de abril no espaço do Gnration em Braga.

Independentemente de todos os argumentos supra, gostaria de refletir brevemente no caso do meu irmão. O meu irmão nasce num estado privilegiado. Nasce num país desenvolvido, com o amor e a presença dos seus pais ao longo da sua infância. Cerca de 2008, apenas com 9 anos atravessa uma severa crise familiar, onde vê as economias a darem uma volta de 180º graus. Os pais permanecem juntos neste período, com alguns dissabores à mistura, e tal como muitas famílias nesse período, surge a necessidade de recorrer aos cabazes sociais de modo a suprimir a ausência de alimentos em casa, derivado à crise económica. As calças rotas surgem como moda e assim o meu irmão pode andar sempre na tendência. Apesar de todos estes sobressaltos, mantém-se uma pessoa delicada, sensível e sempre disponível a ajudar os outros. Talvez por isso tenha conquistado o coração de muita gente. Influenciado pelo seu irmão mais velho vai para o basquetebol e dada a sua entrega e ética de trabalho torna-se uma referência dentro e fora dos balneários. Ao contrário dos outros colegas, permanece no clube sem pagar um tostão. Afinal, a sua presença era uma lufada de ar fresco para todos os que com ele privavam. Sempre ouvi dizer “mas que pequeno homenzinho”, ou “que rapaz tão atinado”. Dizem que na escola conseguiu convencer até os mais traquinas a alinhar com os ideais do ensino.

Dada a instabilidade financeira e o seu talento natural, o meu irmão reforça a convicção que tinha de se manter focado. Foi somando um conjunto de bolsas de mérito ao longo da sua carreira académica. Aos 16 anos vai trabalhar porque uns trocos a mais eram convenientes para qualquer coisa. Afinal tem a sorte de ter o escalão A depois de a minha mãe muito suar. Nem sempre as burocracias do nosso sistema são as mais justas e lógicas. Afinal esses trocos que tinha juntado servem para pagar uma dívida familiar. Em vez de baixar os braços ou se deixar frustrar com isso, o meu irmão mantém a cabeça erguida sabendo que estava a fazer o melhor pela família. No primeiro ano da faculdade o meu irmão soma por vezes 60h de trabalho ao fim de semana em catering e ainda assim é desafiado por uma professora a ir auxiliar no trabalho de laboratório. Ele é incapaz de dizer que não. Perante a impassividade da turma face à proposta de delegado, o meu irmão que acumula trabalho em catering, em laboratório e no contexto académico, acaba por se autopropor ao cargo. Entretanto na empresa de catering é caraterizado como um dos melhores funcionários e aos 18 anos já serve a presidência (mesa dos noivos) e chega a auxiliar a chefia.

Conclui, entretanto, com mérito a licenciatura em bioquímica e lança-se em milhares de sonhos. Tem o desejo efervescente de ir estudar para fora, mas sabe que o seu privilégio não é suficiente para alcançar esses voos. Inscreve-se no mestrado de genética onde tem algumas quebras existenciais. Graças a Deus é humano. Levanta-se e trabalha arduamente para se recompor. Superando um divórcio dos seus pais, encarando a responsabilidade de sozinho, durante mais de um ano, cuidar da sua irmã mais nova. Consegue alcançar mais uma vez as suas metas.

Dia 14 de Março irá defender a sua dissertação de mestrado, para mais uma vez concluir com mérito os seus objetivos. Em suma, eu não sei se a meritocracia existe, mas sei que o meu irmão é um símbolo do mérito.

Bibliografia

  1. Lawson, G. M., Hook, C. J., Hackman, D. A., & Farah, M. J. (2016). Socioeconomic status and the development of executive function: Behavioral and neuroscience approaches.
  2. Boyce, W. T. (2016). Differential susceptibility of the developing brain to contextual adversity and stress. Neuropsychopharmacology41(1), 142-162.
  3. Teatro das Sombras