As democracias assentam na soberania popular, mas é na qualidade das suas lideranças – políticas, económicas, culturais – que reside o sucesso das sociedades abertas. Quando as elites são fracas, dificilmente as instituições que sustentam o bom funcionamento da sociedade serão sólidas para suportar as tentativas de captura dos diversos poderes, públicos e privados, por parte dos seus elementos mais violentos ou corruptos. De nada adianta assinalar a separação de poderes, o império da lei, a independência da justiça ou consagrar direitos fundamentais, se do ponto de vista substantivo a comunidade tiver maus níveis de governação. Como cantaria o nosso mais genial poeta, “fracos reis fazem fraca a forte gente”.

Portugal acordou no dia 11 de Março de 2024 com resultados eleitorais que dificultam de sobremaneira a governação do Estado. Ao contrário daquilo que é a narrativa corrente, não são os 48 deputados ou os 18% de votos obtidos pelo Chega que bloqueiam a governação, mas o acantonamento partidário que tornou a política em Portugal numa luta fratricida entre esquerda e direita, esvaziando o centro moderado e as possibilidades de consenso que sempre existiram, até 2015. Quando partidos como PSD ou PS definem linhas vermelhas entre si, impedindo as possibilidades de cooperação, forçando maiorias com o suporte das franjas mais radicais do eleitorado, abrem-se cisões na comunidade que facilmente são capitalizadas por quem quer amplificar o descontentamento.

Depois de cinco anos de governação à vista, onde o governo da Geringonça aproveitou a brisa de um período estável para não reformar o país, as tormentas de um período mais difícil e exigente vieram por a nu as fragilidades estruturais de um Portugal sem liderança.

A situação política vivida Portugal recorda-me a queda de Péricles e, pelas suas similitudes, a ascensão ao poder de Cléon. Depois de uma governação próspera e que para muitos marcou a Antiguidade Clássica, Péricles entrou em desgraça, em grande medida por ter caído no erro de ambicionar criar um Império (usando o tesouro e a influência da Liga de Delos, quando a sede desta se transferiu para Atenas), dando início à Guerra do Peloponeso contra Esparta e seus aliados. Ora, durante a guerra, uma peste devastadora atingiu Atenas, exacerbada pela estratégia de Péricles de abrigar toda a população rural dentro das muralhas da cidade. A peste matou um terço da população, incluindo o próprio Péricles, e enfraqueceu significativamente Atenas.

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A Péricles sucedeu Cléon, personagem perpetuada pelas obras de Tucídides e pelas comédias de Aristófanes, e que marcou a Antiguidade Clássica com a sua suposta habilidade em persuadir as massas atenienses usando de uma retórica inflamada, ataque às elites, apelos emocionais e promessas populistas que ficaram famosas pela sua malvadez e por desconsiderarem as consequências a longo prazo das suas políticas para a cidade-estado ateniense. Tucídides descreveu Cléon como “o mais violento entre os cidadãos atenienses”. Já nas comédias sobreviventes de Aristófanes, Cléon é sempre apresentado em estado de raiva; quando fala, a sua voz ressoa como a de um porco escaldado. Se Tucídides e Aristófanes podem ser acusados de elitismo e inimizade, quase um século depois, o insuspeito Aristóteles recordou Cléon como “o homem que, com os seus ataques, corrompeu os atenienses mais do que qualquer outro”.

Passados vários séculos, a história da humanidade assiste, de tempos a tempos, à ascensão de políticos com apoio popular obtido fruto de performances histriónicas. O populismo num tempo digital tem, além disso, aliados tecnológicos únicos, como redes sociais que brutalizam os eleitores, promovem o culto da personalidade, acantonam as pessoas em bolhas egocêntricas, amplificam os problemas e as dificuldades retirando-os do contexto até bloquearem os cidadãos de uma forma quase catatónica. Algo que torna o exercício da política muito mais exigente para quem não prescinde do compromisso com a verdade e com o pluralismo. E não tem perfil para fazer danças de Tik Tok ou guinchar em público para se tornar próximo das massas.

É um facto que mais de um milhão de portugueses, como Pandora, fartos daquilo que lhes oferece o quotidiano, decidiram abrir a jarra do incerto e saltar no abismo para ver o que ela escondia. O que se segue, ainda está por desvendar. Logo veremos se as lideranças dos partidos que sobram preferem recuperar o eixo da moderação e da responsabilidade, à semelhança do ponderado Prometeu, ou se optam por seguir os passos do marido de Pandora, o irrefletido Epimeteu. Se Pandora com a sua curiosidade irresponsável libertou todos os males do mundo, também sabemos que no fundo da jarra repousava a esperança que, desde então, passou a ser a última coisa a morrer.

Os problemas que Portugal enfrenta são complexos, não sendo passíveis de resolução com receitas simples. A sua mera enunciação não tem um caráter redentor, sendo necessário, para que voltemos a ter uma rota de crescimento, gente com capacidade, ideias claras, e um amplo sentido de cooperação. Não haverá futuro numa sociedade dividida, motivada no rancor e na desesperança. Gente fraca e sem qualificação não fará forte a nossa gente. Pelo que se os partidos e as lideranças políticas em Portugal forem incapazes de cooperar e pôr de lado as pequenas diferenças, deixando de jogar o jogo político apenas a pensar na conquista do Poder, dificilmente seremos capazes de inverter a rota descendente da nossa democracia.