Peço perdão aos bons leitores que, como eu, desprezam o uso pejorativo da palavra “mito”. Este bel vocábulo, de origem grega, significa simplesmente “reconto” e, na sua origem e bom uso, nada tem a ver com “mentira”. Peço por isso, e desde já, a quem me queira apedrejar, que me conceda o benefício da dúvida: uso a palavra “mito” não em sentido pejorativo – do que seria incapaz –, mas em sentido irónico, já que são os adeptos do mito do progresso que, o mais das vezes, chamam mito a tudo o que seja religioso.

Dito isto, claro, o mito do progresso é sem dúvida uma mentira – e nem sequer uma mentira muito boa. Aliás, como evidenciou G.K. Chesterton, é uma mentira tão má que ninguém, no seu perfeito juízo, poderá dar-lhe crédito algum. Esteja Chesterton errado ou o mundo louco, ou ambos, o facto é que a maioria de nós parece professar dogmaticamente este credo inacreditável. Numa versão académica, parece-nos uma verdade inquestionável que o “mundo de hoje”, moderno, é melhor do que o mundo medieval, plena “idade das trevas”. Trocado por miúdos, parece-nos evidente que a nossa geração, jovem, é melhor do que a geração dos nossos pais e avós; e, embora essa de facto tenha sido a sua esperança, não se segue de forma nenhuma que seja verdade. Não consigo perceber, comparando com o que acontecia há cinquenta anos atrás, como é que ao facto de a percentagem da população tatuada ou o número de nações que despenalizaram o aborto ser maior hoje se segue que isso seja uma coisa boa.

Não me interpretem mal! Sou inteiramente contra a despenalização do aborto, mas não tenho nada contra tatuagens e tatuadores, a menos que sejam eles mesmos hostis a um saco de batatas não tatuado como eu. Também não tenho nada – longe de mim! – contra a ideia de progresso. Isso seria, claro, contraditório: “progredir” há-de significar algo como “tornar-se melhor”, e só um louco, tendo que mudar, quereria mudar para pior. O mito do progresso, porém, não se limita a dizer que devemos progredir, mas pretende dizer-nos que, porque estamos a mudar, estamos a mudar para melhor; isto sem o mínimo esforço de definir “melhor”. Segundo o mito do progresso, com o tempo progredimos e, por isso, “melhor” significa apenas aquilo em que nos tornamos.

E é aqui, claro, que o mito do progresso é uma mentira; e uma mentira muito feia: não só porque nos engana o intelecto, mas sobretudo porque nos tolda o sentido da vida. Eu, que não sei uma palavra de chinês (nem, para todos os efeitos, de mandarim), ouvi várias vezes da boca de um amigo um provérbio alegadamente chinês, que reza: “Um barco que não conhece o seu destino não reconhece ventos favoráveis”. Ora, se o provérbio é autêntico ou não, isso nada afecta a sapiência que encerra. Um mundo incapaz de dizer o que é bom é um mundo incapaz de dizer o que é melhor; e um mundo que não sabe o que é o melhor, poderá mudar, e até poderá ter sorte algumas vezes, mas é um mundo incapaz de progredir.

O mito do progresso está um pouco por toda a parte: seja no drama humano do aborto e da eutanásia, seja no olhar lançado a quem se atreva a caminhar pela rua em calças boca-de-sino. Até em ambientes de suposto diálogo religioso podemos ouvir o ateísmo ser aclamado pelo facto de ser um dado moderno – como se uma doença fosse benigna por ser recente.

Mais do que um convite a um exame de consciência (o que não deixaria de ser uma ideia interessante), este artigo pretende incentivar o leitor – “inspirar” talvez seja pedir demais – a, da próxima vez que julgar algo como melhor sem se perguntar primeiro o que “melhor” significa, da próxima vez que identificar o novo com o bom, ou da próxima vez que, em suma, voltar a oferecer sacrifícios ao Baal do progresso… nesse dia – e poderá ser já hoje –, coloque-se a questão: “o que é, de facto, bom? o que é, de facto, melhor?” O meu conselho é que não descanse enquanto não encontrar resposta a essa pergunta; e, se nunca encontrar descanso, quiçá seja pelo melhor.

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