O futebol é de facto um lugar estranho. Há sensivelmente um ano, Bruno Lage era considerado um herói, o salvador improvável de uma época dada como perdida, uma espécie de “novo” Mourinho com um discurso, no entanto, mais agregador e conciliador que este. Hoje é visto por muitos como o principal responsável por uma época desastrosa, que nem a possível conquista da Taça de Portugal poderá remediar, um treinador mediano que não teve a capacidade de segurar uma vantagem confortável, que poderia dar ao Benfica um título para muitos altamente provável perante adversários debilitados financeira e desportivamente. O que se passa no Benfica? Como é possível que o clube português aparentemente mais estável da atualidade, mais robusto financeiramente e com maior investimento na equipa de futebol se arrisque a perder o campeonato para o FC Porto mais frágil dos últimos 40 anos?
No meu entender, existem várias razões para esta crise que assomou o Benfica: fraca liderança por parte do seu presidente, ausência de estratégia desportiva e uma gestão desportiva completamente falhada, diria mesmo amadora sob determinados pontos de vista, como atesta, aliás, a forma como recentemente Vieira terá aliciado Jorge Jesus para voltar para a Luz.
O atual presidente do Benfica tem mérito em ter recuperado a instituição da sua maior crise. Devolveu credibilidade, construiu obra e estabilizou o clube. Isto é indiscutível. Mas será suficiente? Julgo que não. Aquilo que o presidente do Benfica realizou nestes anos em matéria de obra, de credibilidade e de estabilidade era o expectável para um clube com a dimensão do Benfica. Ou seja, será assim um feito tão extraordinário – tão invulgar, como alguns defensores de Vieira postulam -, recuperar um clube com a dimensão do Benfica, um clube com uma massa adepta gigantesca e com um poder social sem paralelo no desporto português e, em certa medida, na Europa? Será assim um feito tão inolvidável, recuperar a credibilidade do clube português com maior potencial financeiro, social e desportivo? O trabalho de Vieira ao longo destes anos é meritório, mas está longe de ser considerado um feito iluminado como muitos fazem parecer.
Por outro lado, apesar do trabalho apreciável de Vieira em alguns aspetos, existem vários pontos que me parecem amplamente negativos: o clube perdeu dimensão internacional nos últimos anos, nunca conseguiu ganhar a hegemonia do futebol português, mesmo numa altura em que Sporting e FC Porto estão a passar crises financeiras e desportivas gravíssimas, e adquiriu uma imagem social relacionada com corrupção que nunca antes conhecera na sua história. Se, há uns anos, os benfiquistas poderiam acusar o FC Porto de manipulação de resultados e de corrupção, embora nunca provada, hoje, poder-se-á dizer, no mínimo, que o clube da Luz tem “telhados de vidro”, tais os inúmeros indícios de práticas ilícitas de algumas das suas principais figuras, nomeadamente Luís Filipe Vieira e Paulo Gonçalves.
1 O Benfica assumiu-se como clube de dimensão internacional na década de 60. Durante décadas, apesar de nunca mais ter conquistado nenhum título europeu, o clube da Luz atingiu um projeção internacional assinalável, seja pelas várias finais que alcançou de forma relativamente regular até 1990, seja pelas campanhas positivas que regularmente fazia nas provas da UEFA. Contudo, desde sensivelmente essa altura, que o Benfica vem perdendo dimensão internacional. Mais recentemente, quando se julgava que poderia adquirir algum desse estatuto numa altura de maior estabilidade financeira, o Benfica falhou redondamente nesse capítulo ao apresentar-se, invariavelmente, nas provas da UEFA com prestações que, a meu ver, mancham a história europeia que o clube da Luz construiu ao longo das décadas. Salvo as duas finais europeias e a ida aos quartos de final da Champions na era Jesus, que percebemos agora terem sido mais fruto do trabalho do seu treinador (e respetiva equipa técnica) do que da estrutura encarnada, as representações do Benfica nos últimos 20 anos têm sido ao nível de um clube de segunda ou terceira linha europeia. A ambição de Vieira ser campeão europeu com base na formação é um sonho pueril, não porque o Benfica não pudesse sonhar com esse objetivo, mas porque a forma como Vieira (não) desenhou esse projeto não tem, simplesmente, qualquer viabilidade. O Benfica, neste momento, não tem ninguém que apresente um projeto europeu credível, sustentado e, sobretudo, viável. Vieira não entende, minimamente, de futebol para ser mentor do projeto de futebol do Benfica. Claro que já acertou algumas vezes no que ao futebol diz respeito, quando, por exemplo, manteve Jesus contra todas as opiniões, mas, no geral, Vieira não tem conhecimentos de futebol suficientes para elaborar um projeto desportivo para o Benfica, sobretudo numa altura em que o Benfica precisa, urgentemente, de se afirmar no contexto europeu – porque é lá que o futebol atual se discute, mas é lá que o clube da Luz tem sido, invariavelmente, vergado perante equipas com muito menor dimensão.
2 Ao contrário do FC Porto, o Benfica não consegue a hegemonia do futebol português desde os anos 70. Agora, quando se esperava que o clube da Luz pudesse adquirir decisivamente essa supremacia perante as adversidades encontradas nos seus principais rivais, o clube oscilou. Não se conseguiu afirmar e, pelo contrário, foi ultrapassado por um FC Porto mais fragilizado financeira e desportivamente. Nos últimos três anos – provavelmente os anos de maior dificuldade do FC Porto – o Benfica ganhou um campeonato (se considerarmos muito improvável o Benfica ser campeão na época atual). Por seu turno, nos últimos 10 anos, o Benfica venceu cinco campeonatos contra cinco, se admitirmos que o FC Porto vencerá este campeonato com maior ou menor dificuldade. Dito de outra forma, o Benfica não alcançou a hegemonia do futebol português quando tinha mais do que condições para o fazer – quanto muito divide-a com o mais fraco FC Porto dos últimos anos. É, de facto, incompreensível como é que o Benfica, sendo o clube com mais capacidade financeira e maior investimento nas equipas de futebol, contratando vários jogadores acima dos 10 milhões de euros e tendo, teoricamente, os melhores planteis do campeonato português dos últimos três anos, apenas vence um campeonato. E recorde-se também, as dificuldades que o Benfica encontrou para vencer o campeonato da época passada, chegando a estar a sete pontos de atraso. O Benfica tem condições para, em Portugal, fazer aquilo que a Juventus faz em Itália, o PSG faz em França ou ainda o Bayern de Munique faz na Alemanha – ser vencedor crónico do campeonato interno e projetar-se na Europa como um grande do futebol. A diferença que existe entre o Benfica e os restantes adversários nacionais – ao nível da massa adepta, do potencial financeiro e da dimensão associativa – é tão grande, que o Benfica facilmente deveria afirmar-se a nível interno de modo esmagador, como se observa, aliás, na maior parte dos campeonatos europeus atualmente, em que os melhores clubes se afirmam, no plano interno, categoricamente, perante os seus adversários. Aquilo a que se assiste, no entanto, é o Benfica a dividir louros internamente e a decair internacionalmente. As diferenças atuais entre o Benfica e a concorrência são de tal ordem abissais (ao nível da capacidade financeira e da força social da sua massa adepta), que o clube da Luz deveria vencer incontestavelmente todos os troféus internos. Um titulo em três anos é amplamente insuficiente na atual conjuntura benfiquista.
3 Os vários casos em que o Benfica e Luís Filipe Vieira estão envolvidos na justiça não podem deixar de levantar algumas questões importantes. Durante décadas, os sócios da Luz orgulhavam-se, juntamente com os seus vizinhos leões, de estarem numa posição moral superior relativamente o clube do Porto. Apesar de nunca se ter provado que Pinto da Costa cometeu ilegalidades, vários testemunhos, escutas telefónicas e outros indícios que saíram a público mereceram a condenação moral da população em geral. Agora, no Benfica, embora ainda não se tenha provado qualquer ato de corrupção, aquilo que tem igualmente vindo a público não pode deixar de merecer a maior condenação. O caso dos emails, dos vouchers, o caso “LEX”, o “Mala Ciao”, as OPAS pouco transparentes e outros negócios estranhos que gravitam em torno da Luz, passam uma imagem obscura que não é condizente, nem com a ética que os benfiquistas (no geral) sempre se orgulharam de ter, nem com a grande dimensão social que a instituição adquiriu ao longo dos tempos. É como se os benfiquistas se contentassem agora em fazer o mesmo que durante décadas criticaram o FC Porto de fazer de forma ilícita. Quando perdiam, acusavam Pinto da Costa de corrupto, agora, como ganham de vez em quando, remetem-se ao silêncio e permitem que o Benfica seja liderado por uma pessoa que já demonstrou ter vários problemas com a Justiça ao longo dos anos. Tudo indica, aliás, que Vieira vá ser em breve formalmente acusado no caso Lex – por alegada troca de favores com Rui Rangel – devido à força das provas que se encontraram. Os benfiquistas podem continuar a assobiar para o lado, a criar narrativas forçadas para explicar os vários indícios de corrupção de que o seu presidente é suspeito, mas os casos são demasiados, alguns deles com indícios claros, para poderem ser ignorados.
Em rigor, Luís Filipe Vieira nunca teve um projeto para o futebol. As contradições são tantas que é difícil identificá-las a todas. Vejamos algumas:
1 Até 2010, a dança de treinadores abundava, sendo escolhidos sem critério, sem qualquer fio condutor do ponto de vista da estratégia e sem que tivessem qualquer afinidade ideológica no que concerne ao jogo. Tão depressa se contratava Fernando Santos, que jogava num 4-4-2 losango, como Ronald Koeman, que era adepto de um 3-5-2, como Camacho, que jogava em 4-4-2 clássico, ou ainda Trapattoni, que foi campeão a jogar em 4-3-3. Em cerca de 10 anos, o Benfica ganhou um campeonato. Muito pouco para um clube português que, já na altura, era o que mais investia no futebol. Em 2010, Vieira tem o mérito de contratar um treinador com um projeto para o futebol: Jorge Jesus. É aí que as coisas mudam para Vieira. Em cerca de seis anos, o Benfica assume-se, pela primeira vez desde há muito tempo, como principal candidato ao título e, inclusive, com aspirações à Liga Europa, alcançando duas finais com um brilhantismo que há muito não se via para os lados da Luz. No final desse ciclo, Vieira decidiu despedir Jesus, porque este não se enquadrava no projeto que ele tinha para o clube: apostar na formação e ser campeão europeu com base no Seixal. Isto foi há sensivelmente quatro anos.
2 Hoje assistimos Vieira a querer desesperadamente contratar Jesus. Terá mudado de estratégia? Ou nunca teve estratégia? O que mudou nestes quatro anos para que despedisse Jesus por este não se encaixar no projeto e agora querer voltar a contratá-lo? Qual é a estratégia de Vieira? Apostar na formação, ou trazer um treinador que lhe garanta títulos? Se Jesus não apostava na formação, isso significa que Vieira vai deixar de apostar na formação? Vai mudar de estratégia passados quatro anos? Faz isto sentido? Onde está o projeto Seixal, que Vieira apresentou há quatro anos?
3 O projeto na formação de Vieira nunca existiu do ponto de vista desportivo. Quantos jogadores da formação são hoje titulares no Benfica? André Almeida, Ferro (por vezes) e Rúben Dias. Apenas três. Será isto aposta na formação? Quantos jogadores da formação foram vendidos ou emprestados nos últimos quatro anos? Muitos. Félix, Bernardo Silva, Cancelo, Renato Sanches, Jadson, Gonçalo Guedes, Nelson Semedo, etc, etc. etc. Algum destes jogadores acabou por ser uma mais-valia desportiva a médio prazo? Algum destes jogadores teve tempo suficiente no Benfica para ser uma mais-valia desportiva? Dito de outra forma, a aposta na formação passava pela aposta desportiva destes jogadores ou pela venda dos mesmos? A transferência destes jogadores encheu os cofres da Luz, sem dúvida, mas terá beneficiado o clube do ponto de vista desportivo? Onde está a ambição europeia quando se vende a preço de saldo um conjunto de jogadores que, se tivessem ficado mais algum tempo na Luz poderiam ter, aí sim, ajudado o clube a afirmar-se na Europa e a conquistar a hegemonia interna que o Benfica não conhece há quase meio século. Por outras palavras, a aposta desportiva na formação deveria passar pela potenciação desportiva desses jogadores no plantel, de modo a que, juntamente com outros jogadores mais experientes, se pudesse alcançar uma dimensão europeia e uma hegemonia nacional sem, no entanto, tirar os olhos do mercado e vender de modo equilibrado, sem hipotecar as expirações desportivas. O que se verificou foi algo que, no meu entender, não fez sentido: vender jogadores a preço de saldo, de forma aleatória e sem qualquer critério do ponto de vista desportivo. A formação do Benfica é neste momento uma das melhores no mundo. Há que dar mérito a Vieira por isso. Porém, quais os benefícios que o Benfica retira dessa formação? Ganha títulos nacionais? Não tantos ,como poderia e deveria ganhar. Afirma-se internacionalmente? Claramente que a resposta é negativa. Logo, uma questão impera: de que serve ter uma das melhores formação do mundo, se ela apenas serve para encher os cofres da Luz, sem que depois isto tenha algum efeito prático no campo desportivo, na conquista de títulos nacionais e, sobretudo, na afirmação do clube a nível internacional?
Por fim, há um problema de base extremamente grave, no meu entender, que os benfiquistas têm ignorado há muito tempo: o Benfica vive neste momento um género de ditadura. Vieira foi eleito democraticamente mas, uma vez no poder, desenvolveu um conjunto de manobras e implementou um conjunto de medidas que fizeram com que o seu poder fosse praticamente absoluto e a oposição fosse reduzida ao mínimo.
1 Há uns anos, numa assembleia-geral composta por poucas centenas de pessoas, Vieira fez aprovar uma norma interna em que apenas se pudessem candidatar à presidência sócios com pelo menos 25 anos de efetividade. Ou seja, desde essa altura que para se ser candidato à presidência do Benfica é necessário ter 18 anos mais 25 anos de sócio efetivo, o que significa que, atualmente, ninguém com menos de 43 anos pode ser candidato. Note-se que para se ser Presidente da Republica é necessário ter-se, pelo menos 35 anos, o que significa que as exigências para se ser presidente do Benfica são maiores do que para ser Presidente da Republica. Vieira justificou esta medida dizendo que, assim, o Benfica ficava protegido de aventureiros que ambicionassem a presidência do Benfica, como sucedeu quando Vale e Azevedo foi eleito. Na verdade, com esta lei não apenas se passou um atestado de estupidez a todos os benfiquistas, como se estes não tivessem capacidade de discernir em quem votar, como se blindou completamente a presidência de Vieira – ele, que quando se candidatou a presidente, em 2003, não teria seguramente os 25 anos de sócio efetivo. Porque é que Vieira se pôde candidatar várias vezes sem ter 25 anos de sócio efetivo e o mesmo Vieira proíbe agora as condições de que ele próprio beneficiou? Se ele não era um aventureiro que pretendia “assaltar” o poder do Benfica, porque razão outros na mesma condição o seriam? O Benfica, provavelmente o clube com maior tradição democrática do país, é atualmente o menos democrático como se pode observar aliás nas assembleias gerais, nas quais a crítica (seja ela válida ou não), outrora bem-vinda e aceite de forma relativamente tranquila, é agora intempestivamente tratada pelo presidente da Direção com agressões ou tentativas de agressão aos sócios.
2 Vieira aproveitou-se, e continua a aproveitar-se, de um trauma benfiquista chamado Vale e Azevedo. É normal que os benfiquistas tenham ficado traumatizados com Vale e Azevedo. Foi o pior presidente da história do clube, num mandato que quase destruiu o Benfica. Mas não foi apenas Vale e Azevedo o principal culpado. Os problemas vinham de trás, dos mandatos de Jorge de Brito e de António Damásio. A única e grande diferença entre estes e o primeiro é que Brito e Damásio eram bem intencionados nas suas ações na defesa do Benfica, ao passo que Vale e Azevedo não o era. No entanto, isto não devia legitimar Vieira de poder monopolizar o poder do Benfica através de uma blindagem aos estatutos que, em grande medida, implementa um género de ditadura na qual reduz substancialmente a oposição. Nem lhe dá o direito de se vitimizar, como fez após o jogo do Marítimo, em jeito de ameaça aos sócios sobre um passado negro do qual ele próprio resgatou o Benfica. Vieira tem uma postura sebastiânica – alimentada por muitos dos seus defensores, como Calado e Capristano entre muitos outros, possivelmente afetados pelo trauma Vale e Azevedo –, que transmite a ideia de que o atual presidente da Direção é o único escolhido para guiar os destinos do Benfica. Ou seja, após o jogo da Madeira, Vieira aproveitou-se do trauma Vale e Azevedo para incutir medo nos benfiquistas dizendo: “Vejam lá o que querem. Se querem continuar comigo, ou voltar a ao passado negro antes de mim”, como se não existisse outra alternativa válida, como se não houvesse Benfica antes e depois de Vieira, e como se o Benfica dependesse exclusivamente dele para ter obra e credibilidade, enfim, como se o sucesso do Benfica se reduzisse a Luís Filipe Vieira. Não depende. Aliás, não sei se estava nevoeiro na Madeira nesse dia após o jogo do Marítimo, mas talvez o nevoeiro mental que se vivia e vive no interior do Benfica desde há algum tempo (desde os jogadores, treinadores e direção) espoletasse o sebastianismo de Vieira e o fizesse, mais uma vez, apresentar-se como o único salvador do Benfica – o D. Sebastião de águia ao peito, surgido no meio do nevoeiro, para reconduzir o clube da Luz à glória. É curioso que D. Sebastião foi o principal responsável pela perda de independência de Portugal entre 1580 e 1640. Talvez Vieira e D. Sebastião tenham, de facto, algo em comum.