Há vários séculos que o ópio, proveniente das sementes de uma espécie de papoila comum no Afeganistão e na China, desestabiliza as sociedades humanas. Opioides sintéticos, como a morfina ou a oxicodona, são hoje utilizados de forma compassiva em pacientes terminais de cancro e nos cuidados paliativos, em particular no tratamento da dor aguda. Naturalmente, a utilização deste tipo de substâncias, pelo seu potencial de dependência e pelo risco que uma tolerância cada vez maior à substância acarreta, deve constituir uma última linha de acção médica ou ser administrada em ambientes hospitalares altamente controlados. Deve estar reservado para os casos mais graves, para os quais não parece existir outra solução.
Tudo isto foi pervertido nos anos 90 nos Estados Unidos, quando a empresa Purdue Pharma conseguiu – de uma forma que, ainda hoje, me parece relativamente pouco escrutinada – que o seu novo medicamento, uma versão do opioide oxicodona, fosse autorizada pela FDA – Food and Drug Administration, a agência reguladora dos medicamentos nos EUA – para o tratamento mais generalizado de todos os tipos de dor, como por exemplo uma dor crónica nas costas ou na recuperação de intervenções cirúrgicas relativamente comuns. A gravidade da decisão foi ainda acentuada pelo facto de, ao aprovar este novo medicamento (denominado comercialmente por OxyContin), a FDA ter dado a entender de que este seria um opioide menos nocivo, com potencial de dependência menor que os restantes opioides. Note-se que esta aprovação não se baseou em nenhum estudo independente ou de longo prazo, supervisionado pela agência ou por autoridades independentes. Sabe-se hoje que não existia evidência científica nenhuma de que a OxyContin seria menos viciante que outros opioides, como a morfina ou a heroína.
Munida desta aprovação profundamente questionável e dos seus próprios ensaios clínicos duvidosos, a empresa Purdue Pharma enviou inúmeros delegados de informação médica, que neste caso deveriam ser renomeados funcionários de marketing agressivo, para introduzir e convencer médicos a prescrever o novo medicamento. Esta estratégia de marketing concentrou-se em inúmeras localidades, geralmente cidades pequenas, no interior dos Estados, que não costumam aparecer nas notícias. Maravilhados com a aparente inovação médica e as certezas (enganadoras) de que este opioide era diferente, os médicos – que na maioria dos casos não conseguem acompanhar em detalhe a evolução científica enquanto realizam a sua prática clínica – confiaram nas decisões da FDA e naquilo que os especialistas de marketing lhes disseram. Para além da enorme falha da burocracia reguladora do Estado (a FDA), que não deveria ter aprovado de forma tão displicente um medicamento desta natureza, este parece-me ser outro ponto central da fraqueza do sistema que deveria proteger os cidadãos: será que devem ser as próprias empresas farmacêuticas as responsáveis por informar os profissionais de saúde dos novos desenvolvimentos médicos e farmacêuticos que lhes podem ser úteis? A mim parece-me evidente que não. Os incentivos das empresas farmacêuticas simplesmente não são coincidentes com os da saúde pública, em demasiados casos. Para além disso, a ética de tratar a venda de um medicamento como a de qualquer outro produto parece-me muito questionável.
Vinte anos depois, os EUA deparam-se com uma verdadeira epidemia de consumo de opioides, particularmente em zonas do país “esquecidas” e decadentes do ponto de vista económico, social e demográfico. Entre 1999 e 2020, estima-se que cerca de 500 mil pessoas tenham morrido de overdoses de consumo recreacional (não-médico) de opioides nos EUA, um número muito superior à de qualquer outra droga (e mais ou menos equivalente a toda a população do município de Lisboa). Para além deste meio milhão de vidas perdidas, muitas outras vidas foram também destruídas: pessoas cuja dependência estragou grande parte da sua saúde e das suas vidas, sem que tenham (felizmente) morrido e, claro, as famílias e redes sociais de todas essas pessoas. Não é exagero afirmar que falamos de milhões de vidas profundamente afectadas por este erro lastimável.
Mas estas vidas destruídas e perdidas não se distribuíram igualmente por todas as regiões dos EUA nem por todos os grupos sociais. Como em quase tudo, uns foram muito mais afectados do que outros. Na verdade, populações que têm trabalhos físicos duros, como operários, mineiros ou outro tipo de ofícios manuais, têm uma maior probabilidade de vir a deparar-se com dores crónicas ou acidentes de trabalho e, portanto, estiveram mais expostos aos perigos da banalização dos opioides na medicina. Vários estudos mostram como o desemprego, a recessão económica, e até os encerramentos de fábricas numa localidade parecem levar as pessoas a um maior consumo de álcool e opioides. E, como tal, localidades em declínio económico acentuado, foram particularmente vulneráveis aos danos da Purdue Pharma. Vários estudos académicos realizados nos últimos anos, indicam que o consumo excessivo e ilícito de opioides foi uma peça muito significativa do aumento preocupante das taxas de mortalidade nos Estados Unidos entre a população não licenciada, um desenvolvimento único quando comparado com outras economias desenvolvidas. Em 2020, Angus Deaton e Anne Case chamaram a atenção para as “mortes da desesperança” provocadas pela tripla “álcool, suicídio e opioides”, que em conjunto são a principal causa de morte nos EUA há mais de uma década. Numa conferência esta semana, voltaram a enfatizar estas tendências de saúde pública e saúde social preocupantes.
Hoje, é inegável de que há pelo menos dois grandes responsáveis concretos nesta epidemia dos opioides: a farmacêutica Purdue Pharma (e as suas tácticas de comercialização) e os reguladores do Estado, que aprovaram a comercialização e difusão tão vasta de uma substância com tantos perigos potenciais. Pessoalmente, atribuo maior responsabilidade à FDA e aos reguladores do Estado, cuja principal missão é proteger os cidadãos, que não são supostos saber os benefícios e riscos científicos de todas as coisas com as quais se deparam no dia-a-dia. Hoje, a Purdue Pharma já declarou falência, na sequência de inúmeros processos judiciais que procuradores em vários Estados norte-americanos puseram em marcha e que custaram milhares de milhões de dólares em indemnizações. Mas esta acção do Estado veio tarde e só foi necessária porque a sua primeira responsabilidade falhou redondamente.
No entanto, a família Sackler, dona da Purdue Pharma, não parece ter sofrido particularmente. Talvez sejam párias sociais em alguns círculos sociais e na opinião pública informada. Mas, em 2018, a Forbes estimava que a riqueza da família Sackler seria de 13 mil milhões de dólares. Os seus nomes continuam em destaque em alguns dos edifícios mais importantes do mundo. Como outras famílias bilionárias e milionárias, ao longo das últimas décadas, os Sackler utilizaram a filantropia para comprar favorabilidade mediática e entre as elites políticas e sociais. Financiaram museus, galerias de arte, universidades, centros de investigação médica e científica. O seu nome adornou alas, edifícios e paredes no museu do Louvre (França), no Guggenheim, no Metropolitan Museum of Art e no American Museum of Natural History (EUA), na National Gallery, no Tate Modern, no British Museum, no Victoria & Albert Museum e até na catedral de Westminster (Reino Unido). Da mesma forma, muitas universidades de topo a nível mundial receberam financiamento da família e com isso nomearam inúmeros centros de investigação: Harvard, Yale, Oxford, Cambridge, University College London, NYU, Tufts, e por aí adiante. Em muitos destes sítios, o seu nome foi removido e foram recusadas doações futuras, mas noutros, como em Harvard e em Cambridge, o seu nome continua em destaque, como se nada tivesse acontecido.
Deve retirar-se o nome da família Sackler dos edifícios e centros que adornaram e que estes pagaram? É possível argumentar que fazê-lo é um mero simbolismo, para agradar às massas, que nada muda. Certamente, não ressuscita vidas perdidas. Mas o simbolismo de retirar o nome dos Sackler é exactamente simétrico ao simbolismo de colocar os seus nomes nestes edifícios. Se este fosse inútil e irrelevante, os Sackler não teriam gasto milhões de dólares a colocar o seu nome em todos esses edifícios simbólicos. Foi precisamente porque perceberam que o simbolismo tem um enorme valor, mesmo que dificilmente mensurável em isolado, que os Sackler investiram os seus milhões. Não foi apenas por bondade: se tal fosse o caso, poderiam ter doado anonimamente ou de forma mais discreta (sem necessidade de ter o seu nome à vista em todo o lado). Foi porque o simbolismo serviu para lavagem reputacional, para construir uma imagem que os permitisse comprar boa vontade nos meios certos. E, se o simbolismo serviu para isso, então também deve servir para o seu contrário.
A hesitação de universidades como a de Harvard em retirar o nome dos Sackler de vários dos seus edifícios, bem como a intensidade dos protestos, contrasta com a rapidez e determinação pública em condenar e agir quando há, por exemplo, casos de assédio sexual que envolvem membros da instituição. Porque é que, uma vez expostas acusações de assédio sexual universidades como Harvard, os protestos e a acção (como a suspensão de professores) é tão rápida, mas o reconhecimento e acção correspondente da gravidade de uma crise de saúde pública que afectou a vida de milhões de pessoas são tão lentos, quase inexistentes e duram mais de uma década? O contraste impressiona. Como aluna nesta universidade, ao longo de vários anos, recebi centenas de emails sobre iniciativas relativas ao assédio sexual, ao racismo, à descolonização do Sul Global, às ligações pouco recomendáveis entre Harvard e o passado esclavagista norte-americano, e até iniciativas de divestment em relação a dinheiro petrolífero, considerado sujo no meio da crise climática. E, no entanto, não me lembro de uma única iniciativa ou discussão pública sobre a responsabilidade moral e social da universidade em branquear o nome dos Sackler, sobre os erros passados e o que se deve evitar no futuro, ou sobre como tentar “reparar” os danos causados, por exemplo realizando iniciativas junto de comunidades afectadas ou potenciais alunos cujas famílias foram vítimas da crise dos opioides.
Existirão causas de primeira e causas de segunda? Causas de que fica bem falar e causas que incomodam ou não são particularmente belas de referir? A classe social, na sua versão mais lata e que é definida não apenas pelo rendimento e pela ocupação, mas pelos consumos culturais, contextos sociais e hábitos quotidianos, continua a ser o grande locus de desigualdade no mundo e nas nossas sociedades. Infelizmente, a esquerda tradicional decidiu abandonar essas questões, deixando-as, muitas vezes, para projectos políticos radicais e demagógicos (Donald Trump, por exemplo, fartou-se de referir a crise dos opioides quando ninguém falava dela em 2016). Falar de outras identidades – o sexo, o género, a etnia, a orientação sexual, até as opções alimentares – e de outros assuntos, como a crise climática, parece ser bastante mais sedutor do que falar desta identidade esquecida – a classe social.
A classe não é sexy e as comunidades como estas que hoje aqui descrevi não são sexy. A pobreza, a desintegração social, o alcoolismo, a enfermidade, o desemprego e o declínio económico inexorável de certas regiões não são coisas particularmente bonitas nem atraentes. Atrevo-me até dizer que são comunidades feias e pessoas pouco polidas para os parâmetros das universidade e galerias de arte em questão, ou da imprensa que os deveria discutir. Mas não deve a política chamar a atenção precisamente para aquilo que não é bonito ver e que não é agradável discutir?