Estamos a um mês do início do Euro2024 ou, como agora se diz, do início de uma onda de crime. É que, pela tese vigente, fazerem-se generalizações sobre características de povos é ilegal e daqui a nada vamos começar a ouvir falar sobre a bravura dos espanhóis, a eficácia dos alemães, a arrogância dos franceses, o rigor dos holandeses, a frieza dos dinamarqueses e a ingenuidade dos ingleses. A polícia não vai ter mãos a medir. Sobretudo com o hooliganismo espoletados pela estreia de Portugal no certame, quando milhões de compatriotas cantarem em uníssono esse discurso de ódio que principia com “heróis do mar, nobre povo”. Obviamente, o primeiro a ir dentro é Marcelo Rebelo de Sousa, com as suas irritantes (e, sabemos hoje, criminosas) tiradas sobre os portugueses serem os melhores do mundo a fazer uma data de coisas. A não ser, claro, que seja “os portugueses são os melhores do mundo a transformar o parlamento em palermento”. Porque é verdade.

Correndo o risco de cometer um ilícito criminal, atrevo-me a dizer que, se os portugueses têm uma qualidade específica é a capacidade de conservar tradições. Vemos isso na Assembleia da República. Quando foi construído no séc. XVI o Palácio de São Bento era um convento beneditino. Quase 500 anos depois, continua a ser uma casa frequentada por gente que gosta de mandar calar. Antes eram monges votados ao silêncio, hoje são deputados votados para silenciar. Não querem um PAR, querem um pai. O fanatismo retrógrado católico e o moderno progressista são muito parecidos. Há uma evidente afinidade entre o autoritarismo que vimos esta semana e o da Igreja. O objectivo, sempre bondoso, é proteger os puros ouvidos do povo ignaro, que não está preparado para escutar ideias controversas.

Quando Alexandra Leitão pergunta a Aguiar Branco se um deputado pode dizer que uma raça ou etnia é mais burra, está a responder à sua própria questão. É claro que pode, uma vez que acaba de o fazer e não lhe aconteceu nada. Com aquela pergunta, Alexandra Leitão insinua que o povo português é tão burro que não pode ser confrontado com o modo como os seus representantes eleitos falam e com aquilo que pensam. Toma-nos a todos por tolos incapazes de lidar com opiniões polémicas sem sermos endrominados por elas. Para Leitão, os berros de André Ventura são como a melodia do flautista de Hamelin, que hipnotiza as crianças e as leva para onde quer, provavelmente para algum sítio onde se vá praticar violência. “O Ventura disse o quê sobre os turcos? Eh, pá, vou já para a casa rasgar de toalhas de banho!” A deputada do PS falou por um número considerável de pessoas que querem que haja opiniões tabu no Parlamento, justamente o sítio onde tudo deveria ser discutido. Aliás, querem que haja opiniões que sejam crime, no Parlamento e cá fora: o chamado “discurso de ódio”.

O discurso de ódio é a antiga blasfémia. Um pretexto para censurar uma afirmação considerada ofensiva e contrária às normas sociais em vigor. O discurso de ódio é uma heresia laica. Além de ser difícil definir, o nome está ao contrário. Na realidade, não é o discurso de ódio que os censores querem proibir. Eles querem proibir é o ódio de discurso, aquele que os arrepia, que não suportam ouvir porque são muito bonzinhos. Quanto mais querem proibir mais bonzinhos se sentem. O que torna ainda mais engraçado o facto de serem estes puritanos que andam na televisão e jornais a sugerir os exemplos mais escabrosos como afirmações hipotéticas no Parlamento. “Então e dizer-se que os asiáticos são todos canibais pedófilos, pode-se?” “E dizer que os africanos são filhos de Satanás e devíamos todos exterminá-los como os alemães queriam fazer aos judeus e bem, pode-se?” “E dizer que os árabes fornicam com camelos, pode-se?” Têm uma prodigiosa imaginação, estes puritanos. Vê-se que dedicam muito tempo a fantasiar estas coisas.

A criminalização do ódio é uma impossibilidade. O ódio é uma emoção e não se consegue criminalizar as emoções. Até porque não controlamos as que temos. O que controlamos são os nossos actos. Portanto, o máximo que conseguimos avaliar com o rigor que a lei exige são os actos motivados por emoções. Se uma pessoa odeia, mas não age com base nisso, não deve ser punida. Eu odeio beringelas, mas não me sinto impelido a destruir as hortas onde crescem. Limito-me a não comer e a aproveitar todo e qualquer fórum para dizer que beringela é porcaria. Também não criminalizamos o amor, apesar de haver quem espanque por amor. Nem a inveja, apesar de haver quem roube por inveja. Nem a felicidade, apesar de haver quem assassine canções quando está feliz.

Quando não conduz a um acto, uma opinião racista não deve ser crime. Pode ser estúpida, mas a estupidez não é ilegal. Se há deputados que querem transformar a estupidez em crime, estão no sítio certo para o fazer. Aviso já que não vão gostar das consequências. Não temos sistema de justiça preparado para isso. Se não conseguimos julgar todos os corruptos, uma percentagem mínima de portugueses, imaginem julgar todos os estúpidos, que somos a maioria. Devem julgar os turcos.

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