A respeito da mensagem social do Papa Francisco, há quem o qualifique como socialista e “de esquerda”. Há até quem o indique como principal referência da esquerda mundial hoje, num contexto de sucessivas desilusões fruto dos insucessos de outras referências dessa corrente política. Há quem veja, por isso, e só por isso, na sua autoridade moral e na sua popularidade um motivo de esperança. Mas também há quem, por esses mesmos motivos, por o qualificar como socialista, o acuse e critique, atribuindo a essa mensagem os mesmos malefícios das experiências históricas do chamado “socialismo real”, como se ela nada trouxesse de novo em relação a tais experiências e surgisse agora muito retardada. Nesse sentido, pronunciou-se José Bento da Silva num artigo recentemente publicado no Observador (Sim, o Papa Francisco é Socialista!).
Esta forma de etiquetar a mensagem social do Papa Francisco (seja como elogio, seja como acusação) segundo estes esquemas simplistas (esquerda e direita) não lhe faz justiça, não esclarece e deturpa essa mensagem. É redutora do seu alcance e esquece a sua especificidade e o que ela traz de verdadeiramente novo. O seu alcance revolucionário está para além desses esquemas e não se confunde com experiências históricas fracassadas, nem com utopias renascidas das cinzas.
Essa mensagem insere-se na continuidade da doutrina social da Igreja e do magistério dos anteriores pontífices. Certamente, reveste-se de uma tonalidade própria, que reflete uma particular sensibilidade pessoal e o contexto social e cultural da América Latina. Mas não representa uma rutura com esse magistério (nem teria sentido que representasse, pois entre os sucessivos Papas, mais conservadores ou mais progressistas, não há a alternância própria da dialética partidária). Isto vale quer para quem elogia o Papa Francisco, por romper com os seus antecessores, quer para quem o critica, também por romper com os seus antecessores.
Assim por exemplo, quando o Papa Francisco critica o sistema económico hoje dominante não se distancia dos seus antecessores. Não critica a economia de mercado, critica a «autonomia absoluta dos mercados», os mercados entregue a si próprios, sem limitações ou corretivos. Tem sido sempre esta a expressão que emprega para definir o objeto das suas críticas (acrescentando-lhe, por vezes a «especulação financeira»), certamente vigorosas. E também tem enaltecido a «nobre missão dos empresários» (que atuam numa economia de mercado), por poderem criar oportunidades de emprego. Não tem, por isso, sentido contrapor (como fazem os seus críticos católicos) essa mensagem ao magistério de São João Paulo II, que, na encíclica Centesimos annus, escrita no rescaldo da queda do comunismo, sublinhou as virtualidades da liberdade económica e da economia de mercado (devidamente enquadrada, porém).
Certamente não é o Papa Francisco o primeiro Papa a denunciar a «autonomia absoluta dos mercados». Poderíamos recuar a mais de um século, a Leão XIII e à Rerum novarum, aos primórdios da formulação sistemática da doutrina social da Igreja (onde também se denunciou o socialismo coletivista), para encontrar a denúncia do puro liberalismo.
E denunciar a «autonomia absoluta dos mercados» não é professar o socialismo, como parece considerar José Bento da Silva no referido artigo. Denota algum fundamentalismo liberal pensar assim, como fazem, por exemplo, os opositores republicanos ao Obamacare, que em sistemas que minimamente se aproximem do “modelo social europeu” veem os perigos do socialismo estatista.
Que a autonomia absoluta dos mercados gera injustiças e desigualdades vai-se tornando cada vez mais evidente, quando as desigualdades de rendimentos atingem níveis nunca antes atingidos. Não são apenas organizações não governamentais, como a Oxfam, que o denunciam. Estudos recentes da O.I.T., e até do F.M.I., denunciam a crescente desvalorização dos rendimentos do trabalho no conjunto global dos rendimentos.
Nas suas críticas ao pensamento social do Papa Francisco, José Bento da Silva cita um texto recente do pontífice, a sua mensagem à Academia Pontifícia das Ciências Sociais de 28 de abril. Trata-se, porém e precisamente, de um texto de grande densidade doutrinal (não de um conjunto de ideias simplificadas ou slogans, de cujo emprego também é acusado o Papa Francisco), que reflete bem a continuidade do seu magistério com o dos seus antecessores, assim como a especificidade da doutrina social da Igreja, irredutível a esquemas simplistas de contraposição ideológica.
A propósito de trabalho humano, o texto reflete a visão personalista (distinta das visões eficientista, economicista ou coletivista), que também se encontra na constituição do Concílio Vaticano II Gaudium et spes (aí citada) e na encíclica de São João Paulo II Laborem exercens. Nele se afirma: «O trabalho não é um mero fator da produção que, enquanto tal, deve adaptar-se às exigências do processo produtivo para aumentar a sua eficácia. Pelo contrário, é o processo de produção que deve ser organizado de maneira a permitir o desenvolvimento humano das pessoas e a harmonia dos tempos dedicados à vida familiar e ao trabalho».
Nesta mensagem, o Papa Francisco sublinha a importância da fraternidade como princípio regulador a atividade económica, em termos que se situam na linha da encíclica Caritas in veritate, do Papa emérito Bento XVI, e que se distinguem de visões inspiradas no liberalismo individualista e no socialismo coletivista. Afirma:
«Onde outras linhas de pensamento só falam de solidariedade, a doutrina social da Igreja fala acima de tudo de fraternidade, dado que uma sociedade fraterna é também solidária, enquanto o contrário nem sempre é verdade, como numerosas experiências no-lo confirmam. Por conseguinte, o apelo é aquele de emendar o erro da cultura contemporânea, que levou a crer que uma sociedade democrática possa progredir mantendo separados o código da eficiência — que sozinho seria suficiente para regular os relacionamentos entre os seres humanos, no âmbito da esfera da economia — e o código da solidariedade — que regularia as relações intersubjetivas no contexto da esfera social. Foi esta dicotomização que depauperou as nossas sociedades.
«A palavra-chave que hoje, mais do que qualquer outra, exprime a exigência de superar tal dicotomia é “fraternidade”, termo evangélico, retomado pelo lema da Revolução francesa, mas que em seguida a ordem pós-revolucionária abandonou — pelos conhecidos motivos — até ao seu cancelamento do léxico da política e da economia. Foi o testemunho evangélico de São Francisco, com a sua escola de pensamento, que atribuiu a este termo o significado que sucessivamente se conservou ao longo dos séculos, ou seja, de constituir o complemento e ao mesmo tempo a exaltação do princípio de solidariedade. Com efeito, enquanto a solidariedade é o princípio de planificação social que permite aos desiguais tornar-se iguais, a fraternidade é o princípio que permite aos iguais ser pessoas diferentes. A fraternidade consente que pessoas que são iguais na sua essência, dignidade, liberdade e direitos fundamentais, participem diversamente no bem comum, em conformidade com a sua capacidade, o seu plano de vida, a sua vocação, o seu trabalho ou o seu carisma de serviço.
A sociedade em que a verdadeira fraternidade se dissolve não é capaz de um futuro; ou seja, a sociedade em que existe unicamente o “dar para ter”, ou então o “dar por dever”, não é capaz de progredir. Eis por que motivo nem a visão liberal-individualista do mundo, onde tudo (ou quase tudo) é troca, nem a visão estadocêntrica da sociedade, onde tudo (ou quase tudo) é obrigatoriedade, são guias seguras para nos levar a superar a desigualdade, a iniquidade e a exclusão nas quais hoje as nossas sociedades se encontram encalhadas. Trata-se de procurar uma saída da sufocante alternativa entre as teses neoliberal e neoestatal.».
Esta mensagem do Papa Francisco denuncia o individualismo libertário, antes de mais no plano antropológico:
«Por fim, não posso deixar de mencionar os graves riscos ligados à invasão, nos níveis altos da cultura e da educação, tanto universitária como escolar, das posições do individualismo libertário. Uma caraterística comum deste paradigma artificioso é que minimiza o bem comum, ou seja, o “viver bem”, a “vida boa” no contexto comunitário, e exalta o ideal egoísta que, fraudulentamente, inverte as palavras propondo a “bela vida”. Se o individualismo afirma que somente o indivíduo confere valor às coisas e aos relacionamentos interpessoais e portanto só o indivíduo decide o que é o bem e o que é o mal, o libertarismo hoje muito na moda, prega que para fundar a liberdade e a responsabilidade individual é preciso recorrer à ideia de autocausalidade. Assim o individualismo libertário nega a validade do bem comum, porque por um lado supõe que a própria ideia de “comum” implica a constrição pelo menos de alguns indivíduos e, por outro, que a noção de “bem” priva a liberdade da sua essência.»
Uma igualdade que não se confunde com uniformidade ou igualitarismo, uma saída para a alternativa entre o individualismo liberal e o socialismo estatista – é esta a proposta do Papa Franscisco, como a do Papa emérito Bento XVI.
Mas não se trata de uma “terceira via”, intermédia, trata-se de uma proposta que se situa noutro plano. A proposta é de um «novo Humanismo»:
«O século xv foi o do primeiro Humanismo; no início do século xxi sente-se a exigência cada vez mais acentuada de um novo Humanismo. Naquela época a transição do feudalismo para a sociedade moderna foi o motor determinante da mudança; hoje, é uma viragem igualmente radical: da sociedade moderna para a pós-moderna. O aumento endémico das desigualdades sociais, a questão migratória, os conflitos identitários, as novas formas de escravidão, o tema ambiental, os problemas de biopolítica e biodireito são apenas algumas das questões que falam das dificuldades de hoje. Diante de tais desafios, a mera atualização de velhas categorias de pensamento ou o recurso a requintadas técnicas de decisão coletiva já não são suficientes; é necessário empreender novos caminhos, inspirados pela mensagem de Cristo.»
Não basta, pois, a mera «atualização de velhas categorias de pensamento». Penso que deste modo se torna manifesto como a mensagem do Papa Francisco se situa num plano que vai muito para além dos esquemas ideológicos, e muito para além da “esquerda” e da “direita”.
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz