Não há almoços grátis. O problema é quando além de pagar ainda se escolhe o chef errado. António Costa quis mostrar-se uma pessoa grata. Depois da Cultura ter apostado nele para primeiro-ministro, ele fez da Cultura uma das suas apostas mal conseguiu chegar ao Governo. Com direito a ministério e tudo.

Só que esta espécie de troca começou mal e parece que vai acabar ainda pior. Depois daquele manifesto de tanta gente culta e intelectual que apareceu ao seu lado em Lisboa para o incentivar primeiro a roubar o PS a Seguro e depois a ganhar o Governo a Passos, Costa errou na primeira tentativa de agradecimento. A escolha-surpresa de João Soares para ministro não resistiu mais que quatro meses. Nem o primeiro-ministro nem a tal elite cultural entenderam a ameaça virtual de um par de bofetadas a dois colunistas como uma tentativa falhada de imitar as literárias bengaladas de Eça. E houve remodelação.

Dois anos passados, o mais certo é voltar a haver mexidas no mesmo ministério. As cenas da última terça-feira são o exemplo perfeito daquilo que um Governo não pode fazer. Pelo menos em público. Após uma escalada de tensão, de pressões várias, de críticas de todos os partidos e de agendamentos de protestos, aconteceu a desautorização. Mal o secretário de Estado anunciou uma Conferência de Imprensa para explicar a mudança de apoios às Artes, Costa chamou-o a ele e ao ministro a S. Bento e disse-se surpreendido com a situação e a contestação. Só que, pouco depois, viu Miguel Honrado dizer que não percebia “a surpresa” porque o primeiro-ministro “estava a par de tudo”.

Confesso que a unanimidade é uma coisa que me assusta. Causa absoluto pânico. Assim que vi tanta gente de acordo e a atacar o Governo fiquei entre o terrivelmente preocupada e o bastante curiosa. Sei bem diferenciar o que é a elite cultural-caviar que sempre viveu da subsidiodependência e produz espetáculos, exposições e instalações para a meia dúzia de amigos, entre lobbies, agremiações e o corporativismo de que fujo a sete pés. E a cultura a que alguns só podem ter acesso com o apoio do Estado, via Governo ou câmaras locais, num País que pouco lê, raramente vai ao teatro e só ouve música clássica via banda filarmónica lá da terra por falta de outra oferta. E fui tentar perceber o problema.

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Logo às primeiras leituras, dei com a receita do costume: o ministro a recuar nos cortes face à pressão global. E a atirar mais dinheiro para cima do problema, subindo as dotações à medida que a contestação aumentava. É um mau princípio. Ou não estava convicto do que decidiu. Ou decidiu mal. Ou decidiu com base na hashtag “somos todos Centeno”, entre o cortar, cativar  e desviar verbas para apresentar aqueles números absolutamente fantásticos que dão os grandes sound bytes.

Mas esta tragicomédia já levava vários actos. Começou com o atraso nos concursos. Complicou-se com a burocracia das candidaturas. E por fim revelou-se uma farsa com a alteração dos critérios previamente negociados. Pequenas subtilezas, nuances ou armadilhas, como alguém já lhe chamou, que mudaram tudo o que inicialmente até parecia justo: fazer depender os apoios a 20% de receitas próprias, mas retirando depois desta definição as receitas de bilheteira e vendas dos espetáculos. Foi assim que duas das companhias de teatro mais antigas do País ficaram sem financiamento entre tantas outras relevantes. E que as estruturas mais pequenas, aquelas com peso local, foram incapazes de corresponder às novas regras unilateralmente criadas. E o problema é que agora quem falar mais alto e mais voz tiver junto dos media ou de Costa, mais receberá. E o debate que realmente interessa, aquele sobre quem deve e merece mesmo ter mais apoio, jamais se fará. Que desses nunca virão manifestos que lhes valham. Nem pressões que comovam a nunca confirmada austeridade centenoriana.

A relação de Costa com a Cultura começou pois com uma opereta de interesses recíprocos, passou por invocação queirosiana falhada e está a ter o final previsível deste Governo: a do primeiro-ministro a sair de cena, desculpabilizando-se e desresponsabilizando-se. O drama é que desta vez tirou o tapete a um secretário de Estado que lhe deu resposta. O enredo adensou-se e só criou expectativa para os próximos capítulos desta novela. Que não podia ser de pior qualidade.

Só mais duas ou três coisas

  • cinco administradores do grupo de colégios privados GPS acusados de desviar para fins pessoais 34 dos 300 milhões recebidos dos contratos de Associação. Serão julgados pelo crime que terão praticado. Mas há quem tenha aproveitado logo para meter no mesmo saco de criminosos todos os colégios que, sacrilégio, recebem estes apoios do Estado. Os tais que protestaram vestindo de amarelo quando os perderam. É o mesmo que dizer que todas as IPSS são como era a Raríssimas e têm à frente pessoas como Paula Brito e Costa, a amiga de Vieira da Silva e Manuel Delgado. Ou que todos os bancos foram geridos por Oliveira Costas e Salgados. Ou que só houve Varas na Caixa (aqui nunca saberemos bem, mas enfim). Ou que todos os ministros de Passos eram iguais a Relvas. E por aí fora…
  • Há dois anos que o Governo e os parceiros da extrema esquerda que o suportam discutem um novo sistema de controlo público dos políticos e de quem ocupe cargos no Estado. Até agora ainda não se entenderam. A Comissão da Transparência tem propostas do Bloco e contrapropostas do PS. Mas Ana Catarina Mendes já veio avisar que “impor polícias aos políticos é uma mau princípio”, porque levanta suspeitas sobre todos. Podemos pois continuar a esperar sentados por estas medidas de escrutínio. Mais altos valores se levantam.