Na semana passada, Matos Fernandes garantiu que não há caos nos transportes públicos. Tem andado a dormir. Se calhar, em vez ministro do Ambiente, é ministro do Ambien. Percebe-se agora porque é que recomendou aos portugueses mais pobres que baixem a potência da electricidade: se tiverem de optar por usar a máquina da loiça em vez da televisão, pode ser que deixem de assistir, no telejornal, às bacoradas do ministro quando fala das suas vidas.

É óbvio que Matos Fernandes não faz a mínima ideia do estado dos transportes, pela simples razão que não os utiliza. Mas, sejamos justos, não é o único. Aliás, de entre todos os decisores políticos e comentadores que opinam sobre as suas decisões, quantos é que utilizam transportes públicos?

Nota: quando eu digo utilizar, é utilizar diariamente e por necessidade. Não são aquelas pessoas que usam porque dá mais jeito, têm metro à porta, a não ser que a meio do dia tenham dentista, nesse caso levam o carro. Ou aquelas que, quando há greve nos comboios, podem ligar para o escritório a avisar que nesse dia trabalham a partir de casa e levam o computador para aquela esplanada que tem wifi grátis, café artesanal e uns muffins de quinoa sem glúten divinais. Ou também aquelas que, estando bom tempo, vão de bicicleta, que Lisboa tem estupendas ciclovias e só por preguiça é que as pessoas não optam pelo exercício. Ou ainda as que, se o autocarro vier cheio (o que é uma maçada, porque há gente que cheira mal logo de manhã, como é possível?), vão a pé. Chegam 15 minutos atrasados, mas não faz mal, porque a chefe é uma das melhores amigas.

Ou seja, não falo das pessoas que usam o transporte público por, naquele dia, ser a alternativa mais cómoda de entre uma vasta paleta de opções. Falo das pessoas que, todos os dias, sem excepção, ou apanham um transporte degradado, sobrelotado e atrasado, ou, como alternativa, apanham outro transporte degradado, sobrelotado e atrasado. A terceira hipótese, claro, é perder o emprego. Porque são pessoas cujo trabalho é presencial (ainda não dá para lavar escadas ou servir cafés a partir de casa, por wifi) e começa impreterivelmente à hora certa. Pessoas que trabalham 8 horas de pé e que a última coisa que lhes apetece é passear de bicicleta.

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Portanto, repito: de entre todos os decisores políticos e comentadores que opinam sobre as suas decisões, quantos é que utilizam transportes públicos? Aposto que nenhum.

Eu não, de certeza. Não ando de transportes, a não ser quando vou ao Estádio de Alvalade de metro (mas volto de táxi, porque é mais confortável e assim só há uma pessoa a ver-me chorar por causa do resultado). Trabalho em casa, sem horários, tenho garagem e, geralmente, desloco-me a sítios onde há garagem. Tudo o que sei sobre o estado dos transportes foi-me contado pela minha empregada.

Foi ela quem me contou, por exemplo, que, desde que entraram em vigor os novos preços dos passes sociais, os comboios continuam a vir com menos carruagens do que antigamente, mas agora andam ainda mais cheios, de maneira que começou a ouvir mais vezes “ó preta, vai para a tua terra!” Também me contou que, por causa das supressões, às vezes atrasa-se a ir apanhar a filha à escola e tem de pedir a uma vizinha que a vá buscar. Ou que, como na estação de Sete Rios o comboio já vem a abarrotar, ela apanha o comboio na direcção contrária, sai duas ou três estações à frente, para então apanhar o comboio certo com lugar para se sentar, pois está cansada. Mas não é só sobre o estado dos transportes, também aprendo sobre o SNS. Foi ela quem me contou que, devido às listas de espera no Amadora-Sintra para operar a filha, marcaram-lhe a cirurgia para Bragança.

O leitor dirá que é só uma pessoa e não se pode ficar com uma ideia de como funciona um sistema inteiro tendo como única fonte apenas um testemunho. Evidentemente, o leitor tem razão. Sucede que esta única pessoa é, ainda assim, uma pessoa. A ideia que dá é que quem costuma decidir e opinar sobre transportes fala com zero destas pessoas.

Além de não andarem de transportes por necessidade, não convivem com ninguém que ande. Para já, não têm empregada doméstica. Às vezes por razões económicas, quase sempre por razões ideológicas. Têm, na imorredoira definição de Francisco Louçã, “uma senhora que vem ajudar”, normalmente a dias. Se falta por causa da greve dos barcos, compensa no dia seguinte e o patrão nunca desconfia. Até porque, como ela vem num horário em que não está ninguém em casa, nunca se cruzam, não conversam.

Os seus amigos e colegas também só usam os transportes por conveniência. A-do-ram bicicletas! Têm chefes compreensivos ou são funcionários públicos e, como trabalham 35 horas, têm tempo para esperar pelo autocarro. E falam de transportes nas redes sociais, geralmente durante o dia, provando que não têm os empregos da classe operária em que os trabalhadores não têm vagar para estar no Twitter e no FB durante o expediente. Não são patrões, não têm funcionários ou sequer subalternos de outra classe, só convivem com pessoas igualmente privilegiadas.

O contacto que têm com quem sofre as agruras dos transportes é ainda menor que o meu. É o chamado Paradoxo do Privilégio: quanto mais privilegiado alguém é (e eu sei que o sou bastante), maior o convívio com desprivilegiados e melhor noção das condições em que vivem os mais desfavorecidos. Acabei de o inventar, mas parece-me ser o tema ideal para a tese de doutoramento de um sociólogo. Basta-lhe levar o computador para o restaurante vegan, pedir um poke bowl de kale e pôr-se a investigar.

PS – Como é óbvio, pagar menos pelos transportes é bom. É preciso é ver se o que fica mais barato é o mesmo serviço, ou se o serviço piora justamente por estar mais barato e haver mais gente a usá-lo. Se dissermos a alguém que, em troca de lhe baterem com uma tábua nas costas, lhe passam a cobrar menos 30 euros por mês, a pessoa fica contente. Agora, se lhe dissermos que, por causa da diminuição do preço, a tábua vai passar a ser mais larga, mais dura e manuseada por um tipo mais forte, é possível que vacile.