Ora, vamos lá a mais uma prova dos nove sobre o incêndio constante em que vai esta sociedade ocidental dividida entre os wokistas progressistas e os conservadores retrógrados. Eu nunca tive dúvidas de que tanto uns como outros são extremos e, por isso, a cada dia que passa, revelam-se faces da mesma moeda (de 1 euro vá), ambas viradas presunçosamente e orgulhosamente de costas uma para a outra, mas não deixam de fazer parte da mesma superfície imunda que passa pelas mãos de toda a gente e que já não serve nem para comprar uma sandes mista.

O pretexto foi a apresentação de um livro de uma autora que anteriormente escrevera um outro livro intitulado “O Pedro gosta do Afonso”. E logo se levantaram as hastes das bandeiras dos grupos radicalistas conservadores, defensores do bom ensinamento imparcial dos meninos e das meninas. Talvez não sejam completamente imparciais, porque cheira-me que se o livro tivesse sido “O Pedro gosta de ir à missa” já não havia qualquer problema. Se querem imparcialidade, e a favor dela sou, têm todos (wokistas e não wokistas) de a defender melhor.

O problema dos revoltados contra os wokistas progressistas é que se tornam depressa o extremo oposto. Tornam-se iguais e inflexíveis, tornam-se exigentes com a ideologia do próximo, mas não com a sua. O wokismo já provou a sua capacidade de censurar, mas os que combatem o wokismo mostram, todos os dias, e cada vez mais, a mesma capacidade de censurar. A cultura de cancelamento já não é só um sintoma woke, tornou-se transversal.

Vamos às perguntas que interessam fazer. Um livro pode falar sobre um miúdo que se apaixona por outro? Pode. Um livro como este pode ser editado e comercializado? Pode e deve (valha-nos a liberdade de expressão). Um livro como este pode ser comprado para crianças? Pode, se assim os pais das mesmas, e as próprias, o entenderem. Um livro como este pode ser alvo de censura? Não, não pode. Da mesma forma que não pode ser alvo de censura um livro sobre violência, sobre homicídios, sobre orgias, sobre sadomasoquismo, sobre borboletas, sobre religião, sobre violência doméstica, sobre o que quer que seja. Os livros são formas de arte (que podem ser mais ou menos apreciadas por uns e por outros), tal como o cinema, o teatro ou a música. Até hoje, esteve a cabo da Inquisição censurar obras de arte. Não voltemos a abrir uma porta que estava fechada. Pelo menos para mim, é claro como a água que um livro sobre homens que gostam de homens não incentiva a homossexualidade, tal como um livro sobre homicídios ou sobre suicídio não é um incentivo aos homicídios nem ao suicídio, se assim fosse… nem quero pensar na quantidade de livros que teríamos de começar a pensar censurar, que teríamos de começar a considerar inadequados para a leitura das nossas crianças, adolescentes e adultos. E o Shining? Já pensaram no quão desadequado é estarmos a incentivar pais respeitáveis de família a irem para um hotel deserto para tentar matar a mulher e o filho?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora fora de brincadeiras, o que para mim também é muito claro é que a esquerda radical wokista fica atiçada quando mexem nos seus temas de eleição: as minorias, a comunidade LGBT, os direitos das mulheres, etc. Mas o que é igualmente claro é que a direita conservadora radical também fica atiçada quando mexem nos seus temas de eleição, e quando alguém ousa (imagine-se, o traidor!) ter uma manifestação cultural crítica sobre a igreja, sobre a família tradicional, sobre os meninos que podem gostar de outros meninos. Onde anda o vosso estofo, liberais e conservadores? Uni-vos para que não deixeis que o adversário vos faça a cabeça ferver em água só porque tem ideias diferentes das vossas. Pensei que já éramos melhores que isto.

Independentemente de concordarmos ou não com certas visões que diferentes grupos apresentam da sociedade, sim, porque felizmente não nos queremos todos a pensar da mesma maneira, não deveríamos cair no erro de querer censurar ou de entrar em discursos de ódio contra o lado contrário. Muito menos quando falamos da liberdade do exercício criativo como a escrita de um livro. Se entrarmos por aí, não sei onde vamos parar. Ando a dizer isto muitas vezes, é porque não vamos parar a bom porto…

Uma sociedade avançada é a que deixa coexistir, com a mesma abertura, civismo e bom senso, “O Diabo existe”, coletânea de textos do Papa Francisco com “120 dias de Sodoma”, do Marquês de Sade (mas será que o Marquês de Sade sobrevivia em 2024?). É uma sociedade que aprecia, na mesma estante, o livro “Identidade e Família” e o livro “O Pedro gosta do Afonso”. E eu critiquei abertamente o livro “Identidade e Família”, mas não é por isso que não o quero lá na estante da livraria. Quero-o lá e quero-o muito, porque é sinal de que há liberdade. Os amigos do Index Librorum Prohibitorum que me desculpem, mas é a isto que se chama liberdade criativa, de expressão e de pensamento. E coisa mais bela não há.