Os tempos anteriores às eleições são propícios a exageros de todos os tipos: promessas, diatribes, insultos e até comentários acrimoniosos vindos de onde menos se esperaria. É a natureza humana, e a ela conto voltar depois deste texto (passível de ser lido por 15 a 20 pessoas) que – antes de vir a ser publicado de modo aprofundado numa revista científica (onde será visto por duas a três pessoas) – versa sobre a estranha ligação entre o perdão e a edificação da nossa identidade.

Advirto que partirei, na minha reflexão, desde uma matriz convictamente cristã. Uma matriz cujo valor intrínseco a dever ser considerado e avaliado sem preconceitos, como qualquer outra leitura da realidade que seja fiel à verdade e ao real dessa realidade.

Com isto em consideração, e pressupondo que quem me vier a ler terá um conhecimento mínimo da narrativa cristã do perdão – sem cujo conhecimento ninguém pode dizer que está habilitado a falar sobre o perdão, devido à importância dessa narrativa na nossa matriz civilizacional –, afirmo que esta narrativa é única. E é-o, com base quer numa análise teocêntrica, quer numa análise antropocêntrica (tão desvirtuada, por exemplo, pelo simpático Paul Ricœur, que só parece acertar quando erra), embora a coexistência destas duas perspetivas nos coloque ante uma genuína instabilidade.

Uma instabilidade que, além do mais, precisa de lidar com obstáculos para a cognição do (e educação para o) perdão especificamente cristão. Obstáculos como, por exemplo, os dois que passarei a mencionar. Primeiro, o “cristianismo emocional”, inclinado a fazer o sujeito sentir-se bem, fruto da importação, muitas vezes acrítica, dos paradigmas terapêuticos, acabando por se ignorar que o perdão cristão não existe para nos fazer sentir “bem” ou “mal”, mas para nos fazer ser o “bem”. Segundo, a lenta, mas inexorável, perda de práticas de se viver o perdão, recebido e dado.

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Todavia, nada disto é uma catástrofe, antes um repto a vermos sob esses obstáculos. Se o fizermos, veremos que os mesmos decorrem do próprio húmus evolutivo que nos marca, seja como espécie, seja como cristãos inseridos numa história. Não somos realidades estáticas, mas abertas a processos de possível, embora difícil, maturação dentro dos mais diversos enquadramentos em que vivemos.

Isto conduz-nos a uma situação ambivalente, nomeadamente a nível da mutação dos sentidos que damos às palavras com que convivemos na arte da tradução das ideias e experiências que também nos conformam. O relativismo totalitário de hoje, que marca aquele nomear, é uma medusa que se nos escapa. Uma medusa que traduzível na expressão: “Penso, logo o que existe é como eu penso – e ai de quem pensar de modo diferente”. Como empreender um processo, qualquer que seja ele, de humanização se não temos uma ideia clara do que é o ser humano? Mais: como o fazer, inserindo nele um perdão que tantos dizem ser desnecessário e sinal de fraqueza? E se o lograrmos inserir, como articulá-lo com uma realidade da salvação que foi deslocada para as margens da realidade?

Dito isto, nada do que vimos é o essencial. O essencial é algo a que podemos chamar “conversão”, significando isto um realinhar do mapa de sentido do sujeito com o mapa de sentido mais verdadeiro acerca da realidade. De toda a realidade. Isto deve levar-nos a repensar o papel do perdão cristão na constituição da identidade do sujeito. Procuremos, nesta aceção, um terreno sólido no meio do ‘éthos’ coevo, que evite, sobretudo, todas as imagens de um Deus que não seja senão Amor.

Só ante um Deus assim – o verdadeiro – se pode acreditar que possa ocorrer um perdão ligado a uma transformação pessoal que não esteja separada da realidade em que vivemos e que, sobretudo, não esteja apenas associada ao “pecado”. Sim: o pecado existe fruto do nosso egoísmo e precisa de ser enfrentado, mas a narrativa e a práxis do perdão moldador de quem somos também carecem de levar em consideração o perdão de realidades não-morais.

Para isto, a reflexão acerca do perdão constitutivo e conformador de quem somos deve estar assente na constatação de que o Deus-Amor que nos criou, dando-Se para partilharmos da Sua felicidade, também criou o que criou para que fôssemos recetáculos ativos desse seu dar-Se. O Cosmos e o Mundo são reconhecidos, assim e respetivamente, como sendo sacramento e depósito da graça.

Neste panorama, o pecado é um bloqueio na circulação do amor; é recusar amar; é amar a morte fundamental; é ferir a sacramentalidade e a depositalidade em que se opera a edificação da nossa identidade – mormente pelo perdão, que é o amor mais pleno no meio das dores de crescimento de toda a realidade criada. Desde esta perspetiva, a ação de Deus, quando nos perdoa, passa por ser, ante a Sua própria identidade Trinitária, uma dinâmica relacional interpessoal ‘kénotica’ de Auto-doação não retributiva, mas desejando, para nosso bem e enquanto somos a Sua esperança, que a receção de tal perdão se torne fecunda nas nossas pessoas mediante o inserirmo-nos nessa mesma dinâmica, divina e crística, de perdão através da vivência dos três critérios messiânicos de Jesus.

Contra todo o senso que não seja o do amor mais veraz face a um ato imperdoável como a morte dada por nós a Jesus, este ser perdoado imerecidamente (que pede que perdoemos) é uma espécie de incarnação e de amorização contínuas que nos edificam. Por outras palavras: esse perdão divino que nos é dado continuamente suscita o desejo de agir perdoando, de modo performativo e segundo a ‘forma Christi’, naquilo que atualiza a nossa transformação em sermos Corpo de Cristo. O perdão, então e por conseguinte, como algo que é abraçado livremente na trajetória pessoal do sujeito como edificador do seu “eu” mais verdadeiro em tudo o que o humaniza: “Perdoo, logo sou”.

Mas quais os traços do perdão divino que o sujeito abraça? Limitar-me-ei a enumerá-los: é proativo; é gratuito; é sacramental (mas não necessariamente vinculado a algum sacramento); orienta-se preferencialmente para quem menos é perdoado pela sociedade; é uma mola para uma missionação messiânica pautada pelo nosso perdão. Eis, então, como deve ser o perdão cristão.

Pelo ato livre de perdoar, abdicando cientemente dos gritos egoístas das convicções de que temos direito a não sermos ofendidos e a nos pedirem perdão, o processo de configuração da nossa identidade torna-se uma transfiguração que nos leva a participar de modo gerador na ação criadora, redentora e divinizadora de Deus. Ou seja: o ofendido torna-se capaz de se libertar dos impulsos retributivos e de ver na ferida que lhe foi feita ou ocorreu (lembremo-nos das realidades não morais) uma ocasião para uma participação que o permite crescer, seja num amor perdoante análogo ao de Deus, seja numa humanidade à imagem do Homem por antonomásia – Jesus.

Esse perdão, se aceite, liberta quem provoca a ferida, concreta ou imaginária (mas ambas reais a seu modo), da redução do seu ser aos atos operadores de tal chaga, permitindo-lhe ver-se descristalizado do que realizou e aderir a uma nova trajetória vital, entrando, quiçá, numa comunhão com o ferido – a qual, não sendo exigida por quem perdoa, já é, não obstante, possibilitada e oferecida por este.

Como tal, quer a história dos intervenientes no perdão, quer a memória dos mesmos acerca dessa dita história, acabam oferecidas a Deus. De um lado, o ‘perdoante’, começando a encontrar nessa memória a reafirmação da presença de Deus Omni-Perdoante na Sua oferta de uma nova trajetória de vida que permite a Deus aproximar-Se ainda mais de si. Do outro lado, o ‘perdoado’, quando auto-aceite identitariamente como tal, pode vislumbrar em tal memória o ‘élan’ para se manter firme na sua nova trajetória (oferecida pelo ferido) de viver em mudança de vida e em eventual reconciliação.

Eis uma conversão, que é extensível a quem perdoa enquanto libertação dos ímpetos retributivos e dos desejos de esquecer os eventos em que foi ferido, que é mais do que um realinhar de sentidos. Tal conversão é, de modo ciente ou não, um orientar-se para a sua Meta – já em si presente.

Note-se que para aquele que perdoa, o ato de perdoar, em linha com o realizado por Deus em Jesus, implica uma espécie de absorção da ofensa que, talvez de modo paradoxal, pode tornar-se um ímpeto para restringir o já referido instinto retributivo. E fazê-lo, vendo essa absorção (que também é a expressão do não exigir um arrependimento ao feridor), não mais como uma perda mas como um ganho ego-desinteressado, em que a gratuidade está na motivação e não no efeito. Isto não é autorizar ou aprovar a ofensa feita a si ou a terceiros, mas um apontar decisivo de que essa ofensa é contra o amor, contra a ação de Deus, contra o valor e a dignidade humanas.

O perdoar é sempre um processo ligado à dinâmica do crescimento da constituição da nossa identidade. Um processo vital, sem o qual o sujeito não se humaniza nem se personaliza, mas desumaniza e despersonaliza. Um processo em que a nossa história se insere na história de uma Aliança de amor que tem na sua face oculta, uma humildade que, por sua vez, tem na sua face visível a alegria. Uma aliança de perdão que tem, na sua face oculta, um absorver da culpa que, por sua vez, tem na sua face visível a beleza que não prende o outro.

Face a tudo o que disse, o esquecer a ofensa é uma possibilidade real no âmbito do amor purificador da memória; mas, se isso não ocorrer, a ofensa perdoada que é recordada pode sempre ser lida, desde a ótica do perdão, como um agradecimento a Deus por se estar a conseguir perdoar. Só isto permite que o perdão (que Chesterton diz que tem de ser realizado face ao que é imperdoável) psicologicamente impossível se torne uma possibilidade, embora sempre na tensão do incompleto.