A vida não me tem sido propícia a estar tão atento quanto devia ao que tem sido noticiado ou comentado nos meios de comunicação, hoje, e bem, repletos de textos de grande relevo ocasional. Fruto disto, e tendo dado tempo ao tempo, não sei se alguém, em Portugal, escreveu sobre a passagem dos trinta anos da Encíclica “Veritatis splendor” de João Paulo II. Caso tenham sido escritos, ignorem, por favor, estas palavras, que nada de proeminente terão a acrescentar a essas considerações. Caso não tenham, quiçá por estarem mais atentos do que eu aos “sinais dos tempos” tão quentes que temos vivido, talvez o que direi possa ajudar alguém.

A minha memória já não é o que foi, e admito, com toda a franqueza, que li a “Veritatis splendor” pela última vez aquando da primeira vez que o fiz: há vinte anos e no âmbito dos meus estudos de Teologia Moral. Não sei dizer se se trata de um texto mais ou menos importante do que outros da mesma natureza – é difícil comparar estas realidades –, mas na altura em que li tal Encíclica, e numa convicção que se mantém quase inalterável até hoje, senti que era uma Obra magnífica e que, assim, não pôde senão moldar-me como aprendiz de teólogo. E isto, mesmo quando, posteriormente, revi algumas das minhas compreensões e elucidações acerca da mesma, pois um “desenvolvimento” – algo distinto de “progresso” – é natural nestas situações.

A primeira ideia que, talvez estranhamente, me ficou na mente, é que o texto só era sobre a moral de forma indireta. Tratava-se, sim, de um forte apelo a um encontro com a Verdade enquanto uma Pessoa: Jesus Cristo, o Homem por antonomásia. Por outras palavras: a “Veritatis splendor” aponta que a vida cristã não é acerca de regras acéticas e abstratas. É, isso sim, uma relação pessoal e íntima com O libertador do nosso livre-arbítrio, capacitando este a se orientar para a verdade. Esta, por seu lado, a ser entendida, não como “o que eu sinto”, mas como o que me capacita a, n’Aquele, amar mais, melhor e de modo mais belo e alegre a tal Ternura, aos demais e, entre estes, os mais destituídos.

O Cristianismo não é uma ética, muito menos se esta for exterior ao que é o ser humano, mas um modo de ser e viver naquela antes aludida Verdade. Assim, o fazer o bem é sempre amar alguém, e não, diretamente, um realizar, ou não, algo. O mal, por seu lado, é não querer amar autenticamente; é, numa fratura ontológica, não querer viver a respirar tal Pessoa; é recusar a grandeza desse amor que comunica a nossa única própria grandeza; é falcatruar quem somos como pessoas, elegendo o egoísmo (mesmo o camuflado de boas intenções) em detrimento do amor genuíno; é dobrarmo-nos sobre o nosso umbigo, “infernizando-nos” a vida porquanto vivendo sem apreço pelos demais.

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Nada disto, muito menos a insistência no amor, diminui a preocupação por, pelo menos, se tentar fazer apenas o bem, como se os dias estrelados do amor dessem alforria para qualquer tipo de atitude ou comportamento. Pelo contrário: a insistência nesse amor, comunicado fragilmente a nós pelo Amor, afina e apura o fraguar concreto das nossas decisões, escolhas e ações num âmbito pascal. Por outras palavras: num cenário em que, em Deus-Amor, morremos ao egoísmo para ressuscitarmos numa vivência do amor [François Fénelon].

Este amor original e engendrador é mesmo a única realidade que consuma, algo de vital. Não uma submissão infantil (da nossa parte) e despótica (da parte dos pseudo-deuses fabricados pelo ser humano). Ao revés, a nossa liberdade numa amorosa obediência ao Bem objetivo, que todos somos capazes de conhecer e compreender por uma razão que, afastando-nos dos gurus dos tempos modernos, deve ser sempre racional. Na verdade, esse Bem está enraizado no nosso coração, e a ele podemos aceder quando decapamos este coração das aglomerações escamosas do egoísmo que se encrustam nele, tal qual a gordura que se petrifica nos canais do nosso sistema circulatório sanguíneo. Se esta última situação pode ser mortal; o facto anterior – para o qual esta serviu como mero analogado ilustrativo – não o é menos, sendo de reter, por favor, que não há nada de metafórico nisto que acabo de asseverar.

Em tudo isto, a Igreja possui um papel fundamental, mormente pelo seu acumular de saber crístico e esmagadoramente homogéneo acerca das grandes questões da vida. Até podemos dizer, com G.K. Chesterton, que é nela que se consuma a maior democracia, pois não ignora os que já faleceram e “agora” estão, não mortos, mas vivíssimos na Vida. Mas isto tão-somente enquanto a for Cristo e o que de Cristo for um “sacramento”; enquanto a Igreja for, num misterioso organismo coletivo, a transparência do Cristo que nos une a todos; enquanto a Igreja for o conjunto de corações que, diante de tantas perseguições que são dirigidas aos cristãos – das mais cruentes às mais insidiosas –, não tem medo de dizer “nós somos Cristo a Quem perseguis”.

As limitações (morais) cristãs não deixarão de existir devido ao que foi apontado. De modo algum. Isso seria uma nova forma de “farisaísmo” e de “regressão” tão bem censuradas pelo Papa Francisco. Elas serão as limitações do amor verdadeiro; do amor cristiforme e cruciforme; do amor expresso maximamente por Jesus no seu evidenciar quem é Deus e quem é o homem (varão e mulher). Algo que pode ser expresso, por exemplo, em alguns casos muito concretos como: o aborto, a eutanásia, a mutilação corporal a nível da mutação dos sinais biológicos do irrefragável cunho sexual.

Embora sempre em estado de oblação eterna, Jesus não foi “bonzinho”, foi, e é, a Bondade, e esta, decorrendo do amor, só pode anuir ao que o amor anui. Eis, justamente, a razão das Sua advertências e raias que, em muitas ocasiões, dilaceram o nosso egoísmo. Mas a verdade é que quem O segue não o faz para se sentir bem, mas para poder vir a ser, n’Ele e com Ele, o próprio Bem e, consequentemente, a própria Verdade, a própria Beleza, a própria Alegria e, sobretudo, o próprio Amor – que pode com tudo, mesmo quando não possa tudo. O Amor de onde decorrem as demais Realidades que elenquei numa breve suma de um leque imenso como os olhos dos pescadores.

Estes Elementos são, evidentemente, vividos em função de quem os vive, mas apenas como consequência de serem assunções de realidades objetivas que nos são comunicadas para nos embeberem totalmente, sobretudo até às raízes instintivas do nosso ser. Aquelas que não devem ser destruídas, mas maximizadas por esses mesmos Elementos que mostram, nesse caminho, que: a mediocridade e a lassitude podem ser superadas; o ateísmo é um desentendimento acerca de quem é Deus, fruto de não se acreditar no homem; este mesmo ser humano se torna num ostensório desapropriado do único poder que deveria existir: o do Amor [alusão livre a Máximo o Confessor].

Isto é particularmente pertinente nestes nossos dias, que já não são apenas baumaniamente “líquidos”, mas de “vapor humano” [Ishirô Honda] ultra-relativista. Tempos em o “eu acho”, com raízes tão céticas quão nominalistas, se tornou norma numa cacofonia de opiniões insustentadas e insustentáveis. A extrema maioria das vezes, sem terem um substrato sólido que permita um mínimo entendimento comum a nível, nomeadamente, do que é o bem e do que é o ser humano. Algo que (o não se saber o que é o homem) não tem impedido de se fazer experiências sociais, educacionais e éticas em que o mesmo tem sido uma cobaia. Numa analogia, inspirada em Allan Pease, é como fazer mudanças no fabrico do cimento pensado para uma ponte quando não se sabe o que é uma ponte, nem para que serve.

Mas há uma ordem no amor. Uma bússola para o amor. E estas são endógenas a quem somos e a quem podemos ser em relação ao antes apontado Absoluto do Amor. Daqui que a humanização do homem esteja ligada à liberdade em que ele se torna. Aquela liberdade que, diante diversas hipóteses, não tem dúvidas sobre como poderá realizar o amor que, evocando Agostinho de Tagaste, nos permitirá fazer o que queremos. Até lá seremos apenas cativos daqueles nossos fundamentais impulsos vitais, mas enquanto desordenados, desorientados, desprovidos de uma harmonia divina por carência de uma coerência nas, e entre as, nossas faculdades.

Esta coerência, quando bem vista, sacia a nossa inclinação natural por um algo sólido e claro; um algo que nos impeça de tropeçarmos continuamente, fruto destes crescentes vapores de ‘consommé’ de incredulidade em que vivemos às mãos dos sucessores, repletos das ‘nerófida’ da Medusa, de Pirro de Élis. Abertos às ditas “harmonia” e “coerência”, e como deixa claro a “Veritatis splendor”, não mais estaremos no âmbito de uma moral servil e ante um demiurgo faraónico. Jamais. Estaremos, isso sim, no contexto de uma que dimana toda ela do amor – a realidade mais sólida que existe, a ponto de ser o sustentáculo de toda a realidade – e ante um Deus desarmado. Um Deus-Amor a Quem precisamos de proteger do nosso egoísmo. Efetivamente, amar também é proteger a quem se ama do nosso egoísmo; é protegê-lo do que de mortal e mais falso há em nós.

Tudo isto é atualíssimo e o Papa Francisco, tal como tem evidenciado nos seus pronunciamentos e ações, sabe-o muito bem: uma religião que se autodefine por regras morais não é uma religião, antes uma filosofia de vida – se tanto, pois pode acabar por se tornar num totalitarismo pseudo-religioso em que se subscreve duas realidades. De um lado, a estagnação nos miasmas teológicos que, no dizer de Michel Cornuz, enclausuram a espiritualidade e a mística, para que estas não sejam vistas ou ouvidas. Do outro, a rigidez pastoral, típica das (novas?) formas de jansenismo que afloram, aqui e ali, na vida de muitos cristãos, impedindo-lhes de almejar o novo nascimento em Plenitude e no respeito infinito por todas as autênticas realidades humanas.

Que alegria é viver no esplendor de alguém, pecador como eu – sim –, mas que não tem medo de dizer o que estamos a constatar, não por antipatia para com quem pensa de modo diferente, mas, pelo contrário, por tanto os amar. É mesmo dentro da arquitetura magisterial básica da “Veritatis splendor”, fundada nos princípios bíblicos e da Tradição Apostólica viva, que Francisco se move, mesmo quando naquele seu jeito argentino de ‘tanguear’. E se o tango é exigente e fascinante, não é menos o amor. Antes pelo contrário. Haja quem o apresente na sua radicalidade, permitindo vivê-lo na sua genuína expressão humana, que esse será o melhor caminho para se falar de Deus e das consequências de n’Ele se viver.

Nada disto – será que, depois do já escrito, ainda poderá haver dúvidas sobre isso? – diminui o facto de que é mester seguir a nossa consciência, conquanto evitando toda a autocracia solipsista. Ou seja: tendo o cuidado de nos abrirmos a um colóquio com a Luz da Presença, que desperta em nós um agudo sentido da inviolabilidade e do infinito do nosso valor, da nossa dignidade e da nossa liberdade. Sem esse diálogo assimétrico – pois Deus faz-se, diante de cada um de nós, o Baixíssimo [Claude Wiéner] para Se mostrar como uma Verdade irrecusável na compaixão –, seremos gente, mas não pessoas [Alban Ivanov]. E isto, pois estas últimas só emergem da natureza pela generosidade; nomeadamente, e no presente caso, pela generosidade com que se acolhe o que está deveras certo, mostrando o esplendor do amor do Deus-Amor e da verdade dele decorrente.

Se Deus-Amor e o ser humano, a nível da sua ontologia, não mudam, os traços essenciais da relação entre ambos e, n’Aquele, entre os seres humanos e o demais da Criação, tão-pouco. Enquanto também expressos numa moral não moralista – muito menos imputadora dos costumes pelo incutir do medo ou, então, rubikiana e apensa às ideologias da moda –, tais traços não devem ser calculados, nem postos em balanças comparativas – coisa impossível, aliás. Carecem, isso sim, de ser vividos por quem neles acredita como meios de humanização da realidade. Para isso, a moral deve ser entendida como consequência pontual e preâmbulo decalógico pedagógico de uma espiritualidade, sempre precedente e subsequente, dos critérios de Jesus – que não revogam o Decálogo, antes o perfazem no amor.

Termino como comecei: não sei se a minha memória me estará a atraiçoar, mas não podia deixar de, aqui, deixar umas palavras – de foco, essencial e justificadamente, cristológico – sobre a “Veritatis splendor”, justamente nos dias que celebram os trinta anos da mesma ter sido oferecida à humanidade (após uma gestação de seis longos anos). Obrigado Papa João Paulo II por tamanho presente; obrigado Papa Francisco por a guardar no mais profundo do seu coração, não apagar tal texto da história, nem, como disse recentemente em Lisboa, trocar doutrinas por ideologias.