O mundo que conhecemos tem vindo a sofrer uma transformação acelerada com uma cada vez maior geração e acesso a dados e informação. A informação é tal que os mecanismos de validação de veracidade e credibilidade de fontes são de concretização impossível, correndo o risco de, por muitos fact checks desenvolvidos, observarmos um crescente ambiente de descredibilização e, por consequência, de tornar toda e qualquer informação irrelevante.

Como já ninguém nada percebe ou pretende perceber, não se discutem factos mas antes pessoas e organizações, porque na ausência da capacidade de avaliar os primeiros apenas temos a alternativa de confiar nas segundas. Acontece que pessoas e organizações há-as de todo o género e este terreno passa a ser especialmente propício a uma defesa de visões, ideias e opiniões que olham para a realidade de forma distorcida, parcial e enviesada intencionalmente ou simplesmente inconscientemente. Também no campo das ideias há gostos para tudo e, não havendo qualquer base racional de sustentação das mesmas, facilmente caímos em populismos e outros ismos que para a animação do debate público muito contribuem, mas que de valor nada trazem.

Sendo este um cenário catastrófico, capaz de aprisionar a sociedade aos caprichos e vontades de poucos, não devemos deixar de o combater. E este combate tem um inimigo primário – os negacionistas, aqueles que “negam ou não reconhecem como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Este inimigo tem uma hierarquia complexa mas que, como qualquer estrutura militar, tem os seus líderes e seguidores. Naturalmente que são os líderes os primeiros a confrontar, pois são estes negacionistas aqueles que, aproveitando-se do paradigma estabelecido, propositadamente o elevam ao seu extremo criando realidades paralelas e fictícias que defendam os seus interesses particulares. Fazem-no alavancados por um estatuto que os credibiliza e sendo exímios na aplicação das melhores táticas da desinformação, recorrendo a meias verdades, hiperbolizando circunstâncias e retirando dados de contexto.   

Olhemos, como exemplo, para os negacionistas da pandemia. Há mais de um ano e meio que somos assombrados por um conjunto de posições, medidas e ações individuais profundamente enraizadas no movimento negacionista dos quais dou alguns exemplos:

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  1. O negacionismo dos números Covid – Nunca os telejornais tiveram tantos números, nunca existiram tantos dashboards e todos inúteis. Ao final de 17 meses de pandemia, continuamos a não saber quantos são os mortos por Covid, uma vez que o critério usado são “mortos com Covid” levando ao ponto de se uma pessoa infectada sem sintomas for atropelada é contabilizada como vitima da pandemia. Nega-se constantemente a real evolução da pandemia ao longo do tempo uma vez que os casos positivos têm que ser vistos em comparação com os testes realizados, tendo a taxa de positivos vindo gradualmente a diminuir desde dia 7 de Fevereiro (10,03%), registando no passado dia 10 de Julho o valor mais baixo desde então (6,47%). Cria-se também perceções erradas sobre a real capacidade do SNS lidar com os casos graves, mostrando-se recorrentemente os números de internamentos em UCI sem qualquer referencia de comparação, quando hoje sabemos que houve uma menor taxa de ocupação dos hospitais, menos internamentos e menores taxas de ocupação das UCI durante o período de pandemia do que nos anos anteriores.
  2. O negacionismo dos impactos negativos das medidas tomadas – Não obstante não sabermos com clareza os impactos da pandemia, reagimos com medidas cujos impactos colaterais têm consequências que propositadamente decidimos negar como se tudo valesse para evitar uma morte com Covid ou por Covid. Hoje sabemos que Portugal tem mais 400 mil pessoas no limiar da pobreza devido à pandemia, que existe uma regressão na educação e que existem impactos psicológicos relevantes nas crianças. Mas,sobretudo, negamos os mortos causados pelas medidas, pelas cirurgias e tratamentos adiados e pelas doenças não diagnosticadas antecipadamente. Este número é difícil de medir e tem tendência a agravar-se mas, se olharmos para a mortalidade em Portugal, percebemos que em 2020 houve mais 11 565 mortos dos quais apenas 6 906 são mortos com Covid (não de Covid) .
  3. O negacionismo dos riscos associados às vacinas – O discurso público continua consensualmente a afirmar que a vacina não trás riscos significativos, tratando-se de uma vacina como qualquer outra que já tomámos na vida. Negamos por isso o facto de, por força das circunstâncias, o processo de validação destas vacinas ter sofrido menores exigências, negamos as mais de 3290 reações graves em Portugal que já resultam em 50 mortos e 93 pessoas em risco de vida, com tendência a subir, e negamos todos os indícios que vemos nos restantes países associados a problemas graves de miocardite e pericardite.
  4. O negacionismo da Constituição –  Durante décadas a nossa Constituição foi, para o bem para o mal, o baluarte das liberdades e direitos adquiridos sendo que, qualquer medida ou decreto que corresse o menor risco de a contrariar, sofria uma cuidada análise de compliance. Hoje nega-se que juridicamente estejamos obrigados a cumpri-la, promulgando-se decretos e medidas que frontalmente retiram os direitos previstos na Constituição sem qualquer manifestação dos seus históricos defensores.

E assim temos vivido a gestão desta crise pandémica, centrados numa retórica que nega uma fatia relevante da realidade. Não é fácil explicar como chegámos aqui mas começámos com um grande nível de incerteza, sem dados ou histórico que nos permitisse compreender totalmente o que enfrentávamos, e daí o país foi construindo uma narrativa populista, assente na geração do medo, politicamente defensiva e ignorando as conquistas que se foram obtendo na compreensão da real dimensão e risco da doença e das soluções disponíveis. A bola de neve cresceu e só lideranças honestas e seguras seriam capazes de a travar.   

O nosso país é terra fértil para este inimigo. Encontramos negacionistas em quase todos os partidos, canais televisivos, jornais, faculdades, empresas, ruas, cafés, casas. Estão bem preparados e difundem repetidamente as suas mensagens através de todos os meios possíveis. Alguns dos seus líderes fazem-no conscientemente, focados nos seus interesses pessoais pois a realidade fictícia lhes é mais conveniente que a verdadeira realidade, outros são só espontaneamente ignorantes. A ambos urge combater para que se possam tomar decisões mais informadas, fundamentadas, inteligentes, equilibradas e eficazes, colocando os dados ao serviço das pessoas e não ao serviço da manipulação das mesmas.