Em 1975, a Assembleia Constituinte tinha um conjunto de deputados notáveis que montaram um sistema institucional com um duplo objectivo: representar de forma razoavelmente fiel as clivagens políticas existentes no país e, ao mesmo tempo, impedir o domínio de um único partido político. Para além disso, havia ainda um terceiro objectivo: garantir que o Partido Comunista, na altura uma força política e social considerável, tida por Mário Soares e pela elite Socialista como pouco recomendável para a democracia, não tivesse qualquer possibilidade de influenciar o poder.
Estes objectivos foram atingidos através do desenho do sistema eleitoral e da ausência de um voto de confiança no momento da tomada do governo. O sistema eleitoral proporcional, com o método D’Hondt de transformação de votos em mandatos, e o não envolvimento do parlamento na confirmação do governo foram fundamentais para garantir que os governos minoritários funcionassem sem necessidade de serem sequestrados pelos extremos. Este sistema garantiu a estabilidade e a rotação de poder na democracia Portuguesa. À esquerda, onde existia o problema dos partidos extremistas, os governos minoritários do Partido Socialista sucederam-se e foram, de resto, a norma. O sistema desenhado em 1975 funcionou na perfeição. Mais, a utilização sistemática das regras do jogo criou expectativas nos actores políticos e um conjunto de normas sociais sobre o que era e não era aceitável fazer.
Em 2015, António Costa decidiu quebrar estas regras. Por puro oportunismo político, para evitar o maior enxovalho político da sua vida, António Costa deitou para o caixote do lixo da história a interpretação das regras institucionais que havia decorrido até aí. Não nos deixemos enganar. Não houve qualquer derrube do muro, até porque, como foi visível em 2019, quando o PS ganhou as eleições em minoria, Costa preferiu voltar à boa e velha fórmula de governo minoritário clássico com a qual os Socialistas haviam governado desde a democratização. Com a nova interpretação das regras institucionais inaugurada por António Costa, a política Portuguesa transformou-se radicalmente. A partir de 2015, a competição política passou a fazer-se entre blocos e, pior, foram cortados os vasos comunicantes entre o bloco da esquerda e da direita. Atingir o poder passou a depender, no fundamental, na capacidade do bloco da esquerda ou da direita terem a maioria de deputados na Assembleia da República.
As eleições de Março de 2024 serão jogadas à luz da interpretação das regras institucionais feita em 2015. Num trabalho recente, Ken Shepsle mostra como a “imaginação dos actores políticos” pode levá-los a tentar fazer diferentes interpretações das mesmas regras, tipicamente para conseguirem obter benefícios que não conseguiriam de outra maneira. Quais as consequências dos eventos de 2015 para a formação de governo em 2024?
Num cenário pré-2015, o que se passaria depois de 10 de Março seria evidente e simples. O partido mais votado formaria um governo minoritário, ao qual seria dado o apoio tácito por parte do outro bloco. Se o PS ganhasse as eleições, o PSD permitiria a formação de um governo minoritário, tal como aconteceu, por exemplo, em 1995, 1999, em 2009 ou em 2019. Se o PSD ganhasse as eleições, o PS permitiria a formação de um governo minoritário, como aconteceu, por exemplo, em 1985.
Depois de reimaginação das regras políticas levada a cabo por António Costa em 2015, isto deixou de ser possível. A polarização cresceu de forma dramática em Portugal, com o crescimento da percepção de que a vitória do outro bloco é uma questão de vida ou de morte e não apenas da rotação de poder clássico. Mais, o equilíbrio institucional encontrado em 1975 para permitir ao PS governar mantendo o extremismo de esquerda fora do poder ser-nos-ia agora extremamente útil para manter o Chega fora do poder. As mesmíssimas regras seriam úteis para permitir ao PSD governar mantendo o extremismo de direita fora do poder. Num cenário pré-2015, caso o PSD vencesse as eleições sem maioria, o PS, de forma muito natural e à luz das regras formais e informais da democracia Portuguesa, daria um apoio tácito a um governo minoritário de direita. Provavelmente este governo duraria pouco. No entanto, teria a vantagem de garantir que os extremos não influenciariam o poder.
Neste momento, o PSD está a ser empurrado para as mãos do Chega porque o equilíbrio institucional montado em 1975 foi desmontado por António Costa para conseguir salvar a sua pele. Será muito difícil argumentar contra a elite política do PSD que existem regras informais para além da mera contagem aritmética de cadeiras na Assembleia da República. Afinal, foi nesse argumento que se baseou a vitória de António Costa em 2015.
A conta de 2015 chegou e será paga com juros. A mudança da interpretação das regras do jogo acerca do que é admissível ou não ser feito é o pior legado político-institucional que António Costa nos deixa. Depois de oito anos francamente medíocres, Costa desmontou o sistema que o Dr. Soares tinha ardilosamente montado para manter os extremos fora do poder. O diabo chegará a 10 de Março e não será sob a forma de crise financeira. Será sob a forma de crise institucional.