O jogo orçamental é uma invenção do presidente da república. Foi ele, em 2021, quem decidiu que haveria eleições sempre que um orçamento não fosse aprovado. O jogo tem dois pressupostos. O primeiro é que um orçamento de Estado está acima das divergências políticas, e pode e deve ser viabilizado por partidos que querem coisas diferentes. Basta que se “entendam”. O segundo pressuposto é que os eleitores não gostam de votar muitas vezes, e castigarão em novas eleições quem delas passar por responsável. Posto isto, o jogo consiste em cada jogador tentar endossar aos outros a culpa por não haver entendimento orçamental. É um jogo que faz esquecer opções políticas, e concentra a atenção no jeito ou sorte dos concorrentes. Convida ao psicodrama e à manipulação. É a política ao nível do reality show, à medida das televisões.

O picante do jogo deste ano era a suposição de que havia um PRD, à custa de quem o governo esperava reforçar-se, atrelando-o à sua minoria parlamentar, ou canibalizando-o em eleições. Como o PRD em 1987 era um partido recente, com um crescimento eleitoral súbito, muitos pensaram que o papel estava agora destinado ao Chega. Mas talvez conviesse estudar melhor a história. O PRD era feito de votos do PS. Em 1987, o PSD herdou votos do PS, embora através do PRD. E agora, são também os votos do PS que o governo tem em vista. Daí os aumentos para pensionistas e funcionários e o abraço de 22 milhões de euros às empresas de televisão virem embrulhados num fervor woke que, indo além da incerteza sobre o que é uma mulher, até inclui uma ponta de ódio a Israel. Não é um cocktail político a pensar em eleitores de direita. Corresponde ao que as direcções do PSD acreditam desde 2017: que o PS descobriu como se manda em Portugal, e que o PSD precisa de ser igual ao PS para lhe herdar o poder.

As cartas pareciam na mão do governo: ou levava o PS a viabilizar o orçamento, e tinha pelo menos um ano para consolidar a ideia de que o PSD é o novo PS; ou levava o PS a romper, mostrando aos dependentes do Estado que os socialistas, afinal, não cuidam dos seus interesses. A ironia da história é que nada disto seria possível sem a existência de um Chega com que o PSD não quer acordos. É porque o Chega impede as maiorias de esquerda que permitiriam ao PS governar, neste parlamento e provavelmente no que saísse de uma nova eleição, que o PS tem pouco interesse em ir a votos. É porque o Chega concentra agora em si, como uma espécie de para-raios, a demonização de que a esquerda é capaz, que os socialistas reconheceram que o PSD, por contraste, não é bem de direita, é até uma espécie de meio-irmão. O Chega poderia ter servido ao PSD para formar uma maioria reformista. Serve-lhe em vez disso para consolidar uma maioria situacionista.

Tratava-se de saber se os. socialistas iriam descobrir como sair daqui. Não descobriram, como Pedro Nuno Santos confirmou ontem. Vão, portanto, deixar governar Luís Montenegro. Ainda não sabemos se o PSD conseguirá mesmo “cumprir o seu ideal”, como o Brasil no fado de Chico Buarque, e ver funcionários, pensionistas, artistas pró-Palestina e comentadores de televisão reconhecerem-no como o novo PS. O que já sabemos é que governar em Portugal continuará a ser sinónimo de fazer despesa pública, isto é, distribuir através do Estado uma riqueza que os governantes não mostram nenhuma preocupação em deixar crescer. Bem pode o país divergir há vinte e cinco anos da UE. Bem podem Mario Draghi e Christine Lagarde, apavorados com o futuro, pedir “reformas estruturais”. O poder em Portugal é socialista, com ou sem PS.

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