Corriam os idos dos anos 2000, e estávamos no Porto. Mais concretamente, na Avenida dos Aliados, naquele magnífico prédio ornamentado pelo romantismo e inspirado no renascimento, de esguelha para o Banco de Portugal. Era um escritório com duas salas, mais de 40 metros quadrados e 250 Euros de renda, com vista para a Praça da Liberdade e olhar de contemplação para o que o Porto outrora foi.

O centro do Porto dos anos 2000, ou 2004, ou 2008, era um pequeno reduto ao abandono. A vasta maioria das casas e dos prédios — património que transporta a traça de outros séculos, quando o centro do Porto era vida e comércio, sangue na guelra e vernáculo — estava em total estado de degradação, resultado da lei do congelamento das rendas, criada na 1ª República para convencer os descontentes e mantida por Salazar para os manter letárgicos. Na Sé e em Miragaia viviam os que lá viviam. Todos aqueles que podiam, saíram. Os que não saíram era porque não podiam.

Por regra, apanhava o 500 até aos Lóios e subia depois pela rua do Almada. O 500 transportava não raras vezes as varinas e as peixeiras que transportavam em si a alma do que é ser portuense. Às vezes também se fazia negócio no autocarro, uma quina ou meia dúzia de sardinhas por tuta-e-meia. Na rua do Almada ainda restavam algumas lojas de ferragens e drogarias, com artigos de especialidade difíceis de encontrar nas grandes superfícies que lentamente tomavam a cidade. Se a isto acrescentarmos a iluminação de Natal, que dava alguma graça e vida à rua do Bolhão e às perpendiculares da rua de Santa Catarina, pouco mais havia para fazer no Porto de então. O centro do Porto era sombra e memória e sobretudo história, porque o presente vivia-se na Boavista, na Foz, em Nevogilde, em Ramalde, em Aldoar. Em todos os lugares menos no centro. Quando já era noite e voltava no 207, a paragem era eu, a insípida luz alaranjada que saía dos três ou quatro lampiões enferrujados que ainda funcionavam, e dois ou três sem-abrigo que encontravam nos Reis a sua estalagem.

Mas as cidades são organismos dinâmicos, que o tempo destrói, mas também constrói. No início dos anos 2000, a Ryanair tomou a então surpreendente decisão de apostar numa cidade que era, em contexto europeu, marginal. No fundo, o Porto continua a ser mais portuguesa do que europeia, e é precisamente isso que faz do Porto o Porto. Essa aposta não resultou certamente de um qualquer desiderato altruísta, mas antes da perspectiva de negócio. E ainda bem. Foi neste preciso momento que o centro do Porto e sobretudo as suas gentes começariam a ver a sua sorte mudar.

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Almoçar no centro do Porto, em 2008, não era difícil. A oferta era tão reduzida que não existia paradoxo da escolha, pois não existia escolha. Tinha como hábito ir aos Maus Hábitos, do Daniel, que aguentava estoicamente um espaço num lugar onde nada havia, mas onde comia maravilhosos pratos vegetarianos. Não eram certamente as tripas e o pouco que sobrava depois do restante ser dado a quem se aventurava ao mar, mas eram refeições cozinhadas pela Helena e servidas com amor, e um óptimo sumo natural a acompanhar. Em alternativa, uma pequena tasca de um casal vianense, ele em cima sempre atencioso a servir, ela em baixo a cozinhar em lugar sinistro, paredes meias com o hotel dos Aliados, que servia sempre o mesmo arroz tão malandro quanto desenxabido. Pela rua Mouzinho da Silveira havia mais um ou dois cafés, na rua das Flores não havia nada. Não havia flores, não havia gente. Havia uma rua abandonada de que ninguém queria saber.

E os aviões da Ryanair lá foram chegando. A dinâmica começava, finalmente, a mudar. Percebia-se nos pequenos comerciantes que tentavam arranhar um qualquer dialecto, enquanto esbracejavam, que permitisse fechar negócio com aquele beef. E o negócio lá se fazia. Os prédios continuavam devolutos, abandonados, mas na estátua de D. Pedro IV viam-se já os flashes dos disparos de quem, como qualquer portuense, vê o Porto e o sente sempre como se fosse a primeira vez.

Mas foi só uns anos mais tarde que o centro do Porto começou mesmo a mudar. Voltavam-se a ver gruas, voltavam-se a ver canteiros, flores, e canteiros com flores na rua das Flores, voltava-se a ver vida durante o dia. Restaurantes, bares, lojas. Enfim, vida.

Desengane-se quem acha que tudo isto foi obra de um político ou desígnio de um qualquer planeador central. Não foi. Nas gentes do Porto nunca ninguém mandou. Foi obra das pessoas. Das que nos visitam e das que cá vivem. Foi obra do turismo, e foi obra sobretudo do alojamento local, que deu também um rendimento adicional a muitos portuenses.

Foi o alojamento local que deu rendimento e devolveu a dignidade ao centro do Porto. Onde antes jaziam escombros, agora erigiam-se vigas que haviam de suportar e alojar aqueles que queriam visitar o nosso Porto. Onde antes se via um jardim deserto de gente e de vegetação, apenas sombreado pelos carvalhos centenários, agora centenas de turistas revivem e dão alma ao jardim do Passeio das Virtudes de outros tempos, onde agora o espaço escasseia e a sombra dos mesmos carvalhos é exígua. Se ao menos os carvalhos pudessem falar.

Pode dizer-se que todo este turismo, todo este alojamento local, está a desvirtuar aquilo que era o Porto Porto, que é como quem diz, o Porto das suas gentes, o nosso Porto. Estarão, porém, olvidados de que aqui não havia gentes. Nem nossas nem de ninguém. Os prédios de 5 andares vendiam-se a 100 mil Euros, se tanto, e ninguém lhes pegava. Restavam aqueles que beneficiavam das rendas congeladas, e poucos mais. O turismo não desvirtuou, o turismo ressuscitou o centro do Porto. O turismo e o alojamento local deram uma nova oportunidade aos comerciantes, às pequenas empresas, enfim, à burguesia que é e sempre foi a essência e marca do Porto. E hoje essa marca é indissociável daqueles que nos visitam e que são, pelo menos em sentimento, tão portuenses quanto os mais tripeiros de gema de Santo Ildefonso ou da Vitória.

Quando descia Passos Manuel, após o almoço, acendia um cigarro enquanto imaginava como seria o Porto do século XX, porque o Porto de então era frio e distante. O Porto de hoje é «inventar-se a gente noutros gostos e vontades», como escreveu Agustina Bessa-Luís a propósito do amor. Não esqueçamos quem devolveu ao centro do Porto a vida que nunca lhe deveria ter sido tirada.