Na semana passada, enquanto anunciava a sua candidatura à liderança do PS, Pedro Nuno Santos divulgou que era neto de um sapateiro. Mais do que uma curiosidade, a revelação tem um objectivo político de contrabalançar a fama de PNS ser herdeiro de um abastado industrial do Norte. Sim, Pedro Nuno acelerava no Maserati do papá, mas com sapatos remendados pelo próprio avô.

No fundo, PNS deseja usufruir da muito na moda superioridade moral da penúria. Nos dias de hoje, é muito raro haver uma figura pública que não sinalize a virtude de, algures na árvore genealógica, sobressair um pobre. Um antepassado pobre é o antigo antepassado nobre. Em termos de notoriedade, o avoengo de sangue azul foi substituído pelo avoengo todo azul, por causa do frio que passava. A família com brasão passa a família que nem braseiro tinha. A aristocracia deu lugar à miseristocracia.

As dificuldades passadas por um familiar há três gerações são sofridas pela descendência actual, mesmo que tenha uma confortável existência de classe média. Isso granjeia prestígio social e um lugar elevado na escala da opressão.

Houve uma época em que o descendente de um duque queria ter o mesmo estatuto de herói do avô que tomou Lisboa no 24 de Julho; agora o descendente de um desgraçado quer usufruir do estatuto de vítima do avô que pedia esmola em Lisboa, na 24 de Julho.

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Claro que às vezes estas reivindicações de destituição são espúrias e o suposto trisavô jornaleiro era afinal um latifundiário. É preciso ter cautela a quem se reconhece a linhagem de pobre. Talvez não fosse má ideia, assim como há o Conselho de Nobreza para avaliar pretensões nobiliárquicas, instituir-se um Conselho de Pobreza para aferir a legitimidade de pertença a uma vetusta estirpe de míngua. Para evitar imposturas. Há gente disposta a tudo para se poder gabar de descender de um grande paupérrimo.

Não discordo que somos marcados pela nossa ascendência. Sei bem o que é ser estigmatizado pela situação patrimonial de antepassados. É que, no século XIX, o meu tetravô era dos homens mais ricos do país. Para se ter uma ideia da fortuna e poder do então Conde do Farrobo, se vivesse neste tempo teria sido ele a comprar José Sócrates.

Da mesma forma que a memória da privação continua a influenciar uma família que há muito deixou essa pobreza para trás, também a memória da opulência que já não existe é um ferrete que perdura e acaba por limitar as oportunidades de outra família. Por causa de uma lembrança ténue de fidalguia, ainda hoje não gosto muito da ideia de ter um emprego. A minha geração é a primeira em dois séculos a pensar que era bom ter trabalhado. É inegável: o meu privilégio prejudica-me. Sou oprimido pelo facto de pertencer a uma família antiga.

Quer dizer, todas as famílias são antigas, claro. Uso aqui “família antiga” como perífrase para famílias onde já se lia e escrevia há várias gerações, de modo que sobrevivem registos mais completos da sua existência. Outro malefício para a minha saúde mental, uma vez que perpetua a reminiscência de vida fácil que já não é possível manter.

Infelizmente, a sociedade não está preparada para reconhecer esta minha fragilidade e vai continuar a recompensar quem teve um avô pobre em detrimento de quem descende de um milionário. O que é muito injusto: dói-lhe tanto a barriga com a fome que o seu avô passou, como me dói a mim os banquetes em que o meu se empanturrou. Apesar de, na realidade, Pedro Nuno Santos é que é um privilegiado por ter tido um avô desprivilegiado. Ao contrário de PNS, que recebeu do seu avô trabalhador valiosas lições sobre diligência, sacrifício e frugalidade, a mim foi-me vedado esse benefício. Não é que em casa da minha avó não houvesse diligência, sacrifício e frugalidade. Eu é que não tive oportunidade de as aprender, por não conviver com as criadas.

Pedro Nuno Santos tem sorte. Por enquanto, ainda consegue aproveitar a sua herança de humildade para se destacar. Mas, ao fazê-lo, estará a precipitar o fim desta estratégia. É o Paradoxo de Pedro Nuno: usa a pobreza da antanho para conquistar o poder e, desse modo, garantir que continua a criação de futura pobreza de antanho. Um excesso de oferta de avôs pobres vai acabar por diminuir o valor do seu. Quando, daqui a 30 anos, durante o seu 5º ou 6º Governo, o Primeiro-Ministro Pedro Nuno Santos se gabar a um jovem de ter tido um avô sapateiro, ouvirá como resposta: “Quem me dera! No tempo do meu avô já ninguém tinha sapatos”.