Esta semana ficámos a conhecer a proposta legislativa do Governo para enfrentar o problema da habitação. É melhor do que o powerpoint que já conhecíamos, mas continua a pecar pela falta de sustentação de algumas das medidas propostas. Não me parece que sejam necessários estudos para acabar com os vistos gold, um instrumento que foi útil para atrair capital numa altura em que ele tanta falta fazia em Portugal, mas que deixou de ser relevante para o nosso desenvolvimento. Continuamos a precisar de capital estrangeiro, mas de outro tipo e com outras origens. Em relação às medidas de arrendamento coercivo pelo Estado, estou cada vez mais convencido que o único efeito positivo que terão é levar alguns proprietários de prédios devolutos a, perante a ameaça, colocá-los mais rapidamente no mercado. A redução do número de prédios devolutos aumenta a oferta de habitação e melhora o bem-estar de todos os que vivem nessa área. Uma das grandes transformações do nosso país na última década foi precisamente a redução do número de prédios devolutos e a renovação dos centros históricos nas principais cidades. Esta importante transformação foi alcançada através do mercado, com a oferta a responder à crescente procura turística, tornando Portugal num país cada vez mais atrativo para visitar e viver. Os estrangeiros (e muitos portugueses também!) descobriram a beleza dos nossos monumentos e da arquitetura dos nossos edifícios.

Dada a importância que o turismo teve e tem para a economia portuguesa, não se compreendem as propostas de restrição à atividade do alojamento local com o objetivo de resolver o problema da habitação, sem serem devidamente fundamentadas por estudos. O Governo propõe-se a resolver um problema, pondo em causa um dos maiores sucessos da economia portuguesa da última década. Ao fazê-lo, arrisca-se a criar um grave problema para o futuro. Ao pensar sobre as propostas do Governo para restringir a atividade de alojamento local lembrei-me de uma história nas vésperas da crise do euro, que levaria à intervenção da troika.

No final de abril de 2010, quando se soube que a Grécia teria de ser resgatada pela troika para escapar à bancarrota, estava com um colega brasileiro na baixa da cidade do Porto. Naquela altura, o Brasil vivia um período auspicioso, de crescimento económico e confiança no futuro. Vindos da Ribeira, subíamos a Rua Mouzinho da Silveira, e, depois, na Rua das Flores, com alguma condescendência, disse-me que estava surpreendido com o abandono do nosso extraordinário património. Apesar do avançado estado de degradação, era possível a um observador atento vislumbrar a beleza das construções de cantaria em granito e os seus magníficos azulejos. Fazendo um paralelo com as favelas do Rio de Janeiro, em cuja recuperação tinha participado, o meu amigo sugeriu que a Câmara Municipal pintasse as fachadas para melhorar a imagem da cidade e atrair mais turistas. Sim, porque íamos precisar de muito turismo para recuperar a nossa economia. Esta conversa podia ter ocorrido, na mesma altura, num passeio na Baixa Pombalina ou noutra zona do magnífico centro histórico de Lisboa, também nessa altura votado ao abandono. Durante esta conversa, eu, que sabia que estávamos falidos, ouvi-o em silêncio.

O meu amigo brasileiro, Paulo Rabello de Castro, especialista em análise de risco, tinha vindo a Portugal para participar na primeira conferência de um projeto que coordenei sobre os 25 anos de Portugal na União Europeia. A conferência era sobre o elevado endividamento da economia portuguesa. Uma coincidência fez com que tivesse lugar no dia em que se discutia o resgate da Grécia. Era evidente que Portugal estava na linha de fogo dos mercados e as pressões sobre as taxas de juro já se sentiam. Sendo uma das economias mais endividadas do mundo, com uma enorme dívida externa e com as contas públicas descontroladas, era evidente que Portugal não tinha, nem se esperava que tivesse num horizonte temporal próximo, condições económicas e financeiras para recuperar os centros históricos das suas maiores cidades. Mas, surpreendentemente, foi possível. Sempre que passo na Mouzinho da Silveira ou na Rua das Flores, agora com as fachadas impecáveis e os edifícios totalmente recuperados, lembro-me da conversa com o meu amigo do Rio de Janeiro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A recuperação dos centros históricos das cidades portuguesas deve-se essencialmente ao turismo e ao investimento direto estrangeiro. Desde 2010, o número de turistas estrangeiros mais do que duplicou de cerca de 7 milhões para mais de 15 milhões em 2022. Esse aumento da procura permitiu rentabilizar muitos prédios devolutos e também recuperar o sector da construção, que a crise financeira tinha deixado em estado comatoso. Naquele período, o número de alojamentos turísticos mais do que triplicou de cerca de 2 mil para mais de 6 mil. O número de hotéis duplicou de cerca de 700 para mais de 1400 e o número de estabelecimentos com alojamento local quase triplicou de cerca de 1000 para 2800 (Pordata).

Para além do efeito na reabilitação das cidades, a expansão do turismo a partir de 2010 teve também um papel essencial na correção do histórico défice da balança comercial portuguesa. Na figura, podemos ver que, entre 2013 e 2019, a balança comercial apresentou um excedente graças à melhoria da balança de serviços, onde se destacou o contributo do turismo. A correção daquele desequilíbrio externo foi essencial para a recuperação da confiança dos investidores internacionais e para a recuperação da economia portuguesa.

dr

Na figura podemos ver que, desde 2020, a balança comercial voltou a ser deficitária devido ao agravamento do défice da balança de bens. O défice externo não foi maior devido à forte recuperação do turismo em 2022: o excedente da balança de serviços atingiu o máximo histórico de 9% do PIB. Estes dados mostram que desvalorizar a importância do turismo ou tomar medidas que prejudiquem o desenvolvimento dessa atividade pode sair-nos muito caro.

Existe um problema de habitação em Portugal. Mas como descrevi aqui, é um problema bom porque é o resultado de muitas pessoas quererem visitar ou viver em Portugal. Este sucesso, com os incentivos corretos, faria aumentar a oferta de habitação e deslocar a procura para zonas com menor pressão urbanística. Esta crise da habitação é uma enorme oportunidade para reduzirmos as assimetrias regionais. E é uma oportunidade para termos mais atividade económica. Difícil é gerir um país de onde as pessoas querem sair e para onde ninguém quer vir viver, como era Portugal em 2010.