O Roteiro Português para a Neutralidade Carbónica em 2050 estima que o valor global de investimento necessários para a transição climática fique em 1 bilião de euros, dos quais 930 mil milhões de euros “serão realizados em resultado da dinâmica normal da modernização económica”, fruto das políticas ambientais em curso antes da pandemia. O “investimento adicional necessário” está previsto em 85 mil milhões de euros até 2050 (ou 2,5 mil milhões por ano), financiados com o PRR para a transição climática de 3 mil milhões. Tradução: fundos europeus que não se multipliquem numa cadeia de valor sustentável suportam apenas 1 ano e 2 meses do investimento adicional necessário para atingir a neutralidade carbónica. No fim, sobra Bruxelas.

A leitura das componentes do PRR relativas à Transição Climática (C10 a C15) torna evidente duas tendências.

1 Combate à pobreza energética

A versão atualizada do PRR define pobreza energética como a “incapacidade de atingir conforto térmico numa habitação através do adequado aquecimento ou arrefecimento, por motivos económicos”. Nem o clima mediterrâneo ameno privilegia Portugal, segundo a Eurostat, 19% dos portugueses vive em situação de pobreza energética, constando como o quinto pior país da UE, bem distante dos 2% na Suécia, Finlândia, ou Áustria1. A intenção da componente C13. Eficiência Energética em Edifícios do PRR é justamente combater o frio dentro de casa através de investimentos em edifícios residenciais (300 milhões de euros), edifícios da administração pública central e instituições de ensino (240 milhões de euros), e em edifícios de serviços (70 milhões de euros).

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É um total de 610 milhões de euros investidos na ideia que conforto térmico sem aumento de emissões é somente possível com eletrificação. É verdade, mas reduzir a dependência de gás natural na troca de um esquentador por uma bomba de calor elétrica não é o único benefício – o Green Premium também é negativo –, isto é, a solução isenta de emissões de carbono (bomba de calor) revela-se mais barata do que as convencionais não-renováveis (termoacumuladores, esquentadores e caldeiras). Há, então, menos incentivos em continuar a aquecer as nossas casas com combustíveis fósseis, mas só isso não basta: poucos são aqueles com interesse ou dinheiro em substituir um esquentador a funcionar. Por isso, o Governo definiu o plano ambicioso de distribuição de 100 mil vales para mecanismos de financiamento e benefícios fiscais de combate à pobreza energética “direcionado a consumidores vulneráveis”. Esta resposta é a mais diligente possível, e, por isso, o sinal que dá é importantíssimo; apenas ficaram a faltar os critérios de atribuição dos vales na versão final pública do PRR, assim, até ao momento, será apenas a versão de “consumo externo” para Bruxelas que terá mais informações (esperemos). É estranho assim manter-se, mesmo com o concurso de obtenção de vales previsto já para este verão.

Se aplicado com transparência, os benefícios no combate à pobreza energética vão para lá da sua erradicação: reformas na eficiência energética em edifícios (isolamento térmico, equipamentos mais eficientes) permitem desenvolver uma cadeia de valor no setor da construção com efeitos multiplicadores no emprego de mão de obra intensiva. É um facto que a pandemia rapidamente atirou os menos qualificados para o desemprego2, mas esta cadeia de valor pode motivar uma revolução verde atenta ao emprego precário.

2 Aposta na bioenergia

Barragem do Pisão e parques eólicos são estruturantes no PRR, mas são complementados com investimentos em “áreas com menor expressão e onde o potencial para a descarbonização é grande” – é assim que o documento justifica os investimentos em bioenergia (energia proveniente da biomassa). Esta renovável pretende complementar a hídrica e solar, mas não é por isso que ocupa uma fatia menor nos 3 mil milhões de euros da transição climática: Terá a bioenergia um grande potencial de descarbonização, como o PRR sugere?

Hoje, quando pensamos nesta renovável, devemos reconhecer três pontos que eram estranhos quando a introduzimos.

  1. O aproveitamento indiscriminado de biomassa não é positivo – o rascunho de novas políticas ambientais da UE3 esboçam critérios mais rigorosos para a sustentabilidade da bioenergia, nomeadamente pela valorização na absorção de CO2 de árvores maduras e da manutenção de nutrientes no solo (afetados pela desflorestação). Com tantos PRRs enviados, este rascunho ambiental passou pelos pingos da chuva e Portugal conseguiu aprovar o seu PRR com políticas de bioenergia ultrapassadas e sem a sustentabilidade que a Comissão Europeia passará a exigir. Mas com a Europa a retomar a velocidade cruzeiro e a pôr as renováveis em dia, é difícil prever a execução dos fundos sem burburinhos críticos, expondo-nos como isolados e em contraciclo na questão da bioenergia;
  2. Os custos económicos da produção em grande escala são muito altos – até os indiretos aplicados ao consumidor: a competição por fatores de produção (terra, água, capital) entre a alimentação e a bioenergia conduz à inflação de preços nos alimentos.
  3. A densidade energética (energia obtida por metro quadrado) da biomassa é bastante reduzida, a média é 0.30 W/m2. Em perspetiva, para esta renovável fornecer toda a potência instalada no país seria necessário explorar cada metro quadrado do território nacional4.

A soma destas dificuldades é um claro indicador de que a bioenergia será um contribuidor residual (ou negativo) para atingir a neutralidade carbónica; mas, mais elementar ainda, é esta escolha não ter sido colocada numa direção científica que pudesse justificar a contribuição positiva desta renovável.

A versão final do PRR terá por esclarecer os critérios de atribuição e valor dos 100 mil vales energéticos de combate à pobreza energética, assim como a supervalorização da bioenergia. É aquilo que F. Scott Fitzgerald descreve como o derradeiro teste de inteligência: a capacidade de segurar duas ideias opostas ao mesmo tempo e ainda manter a capacidade de funcionar. É esse o teste malabarístico posto a nu ao confrontar as boas intenções do governo com o PRR. A montante de Fitzgerald fica 2050 e a inexorável urgência ambiental. Temos pouco tempo para o futuro. Urge ganhá-lo.

[1] Estudo do Eurostat de 2018

[2] Apresentação do primeiro relatório anual do “Estado da Nação” pela Fundação José Neves

[3] Notícia da Agência Reuters. Mais informações no Sítio Web Oficial da União Europeia

[4] Calculado pelo autor do artigo, tendo em conta os dados da Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) relativos a potência instalada em Portugal em 2019 (22.262 MW). A área do território nacional considerada foi 92,212 km2.