Já focámos aqui o problema de colocar o futebol acima de tudo e as várias críticas que se podem fazer ao Mundial à FIFA, às viagens para ver a seleção nacional e ao Qatar. Hoje quero focar-me na incrível história do Qatar. Este é um Estado exíguo em dimensão, população e história. No entanto, apesar de ter apenas 11.000 km2, sendo nove vezes mais pequeno que Portugal, de ter uma população de pouco mais de 250.000 habitantes, que é um pouco mais do que Cascais, e de ser um Estado independente apenas desde 1971, tem sido uma história de sucesso.

É evidente que não se pode perceber o percurso do Qatar sem referir que é detentor das terceiras maiores reservas de gás natural do Mundo. Mas claramente a sua história não se pode resumir a isso, pois não faltam no Mundo antigas colónias dotadas de enormes recursos que, no entanto, estão longe do nível de prosperidade ou visibilidade global alcançado pelo Qatar. A história do Qatar deixa claro que uma boa estratégia nacional é a chave para ultrapassar a dita maldição dos recursos ou do passado colonial.

Um Estado que não quis ser independente

O Qatar só existe como Estado independente desde 1971 e até há poucos anos atrás ninguém tinha dado muito por ele. Sim, o Qatar como muitos dos Estados desta região é um enorme exportador de hidrocarbonetos. Isso dá-lhe muito dinheiro. Estima-se que o seu fundo soberano terá mais de 450 mil milhões de dólares. Dá-lhe também alguma margem de manobra estratégica. Ainda esta semana foi anunciado um novo contrato de fornecimento de gás liquefeito qatari para preencher parte do tradicional fornecimento russo à Alemanha. O Qatar é hoje o terceiro país mais rico do mundo em PIB per capita.

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E, sim, ter uma população nativa reduzida ajuda na distribuição dos lucros, mas ao mesmo tempo cria evidentes fragilidades e vulnerabilidades. Foi precisamente por isso que o Qatar bem como a maioria dos Estados do Golfo estiveram longe de mostrar grande entusiamo com a sua independência, em 1971. O Qatar tinha sido, juntamente com outras monarquias do Golfo, parte duma esfera de influência da Grã-Bretanha que se formalizou sob a forma de um protetorado durante a Primeira Guerra Mundial, ficando a defesa e as relações diplomáticas nas mãos de Londres. A Grã-Bretanha tinha como prioridade estratégica garantir a segurança da joia da sua coroa colonial que era a Índia. Para isso seguiu o modelo de hegemonia marítima no Oceano Índico esboçado por Afonso de Albuquerque, no início do século XVI, quando, a partir da Índia, avançou para a conquista de Ormuz e transformou o Golfo num espaço de predomínio naval português.

Em 1967, vinte anos depois de negociar a independência da Índia, uma Grã-Bretanha que enfrentava sérios problemas económicos e orçamentais decidiu unilateralmente o retraimento da sua presença para lá do Canal do Suez. Os monarcas conservadores do Golfo sentiam-se alvos apetecíveis como resultado do desenvolvimento da lucrativa exploração do petróleo e gás. Os emires tentaram convencer os britânicos a ficar mais algum tempo, oferecendo-se inclusive para pagar a presença das forças britânicas. O então Ministro da Defesa trabalhista, Denis Healey considerou a proposta o equivalente à mercenarização das tropas britânicas, e rejeitou-a. Esta opção correspondia à ideia de algumas elites britânicas, errada como se veio a verificar, de que a Grã-Bretanha queria concentrar-se em ser apenas uma potência europeia.

Apesar do receio de que este abandono por Londres os tornasse vulneráveis, os monarcas do Qatar não seguiram o exemplo dos vizinhos, que se federaram nos Emiratos Árabes Unidos, Doha escolheria o seu próprio caminho. A aposto foi numa estratégia de hedging, ou seja, de forte diversificação das suas relações externas.

Uma estratégia de visibilidade e diversificação

Se no futebol o Qatar é fraco, como ficou evidente por ter sido a primeira seleção a ser eliminada, no campeonato diplomático da diversificação das relações externas esta pequena potência é uma campeã. O exemplo paradigmático disso é que, ao mesmo tempo que se mantinha no território qatari a maior base militar dos EUA no Médio Oriente, com mais de 10.000 tropas, Doha também foi durante muito tempo a única capital em que os talibãs mantiveram uma representação. Foi no Qatar que decorreram as negociações e foi fechado o acordo que levou à retirada norte-americana do Afeganistão. E foi pela base norte-americana de Al-Udeid que passaram a maior parte dos refugiados afegãos evacuados pelas potências ocidentais no verão passado – Biden agradeceu em pessoa ao emir do Qatar.

Outro campeonato em que o Qatar tem tido muito sucesso é o da visibilidade mediática global, nomeadamente através da criação da Al-Jazeera. Desse ponto de vista não há nada melhor do que organizar o evento visto por mais pessoas em todo o Mundo. Percebe-se à luz da estratégia do Qatar que tenha usado os seus enormes recursos para comprar este Mundial de futebol.

O que o Qatar parece ter descoberto é que um Mundial não vem apenas com publicidade positiva. Vem também, e cada vez mais, com grande escrutínio. Garante maior visibilidade global, mas nem toda ela será positiva. Também fica claro que mesmo uma estratégia bem desenhada não é garantia de total sucesso. Não é a primeira vez que isso sucede ao Qatar. Um exemplo anterior disso foi crise, entre 2017-21, com a Arábia Saudita e os seus aliados na região, depois de prioridades desencontradas durante as chamadas primaveras árabes. Doha mostrou talvez a partir de 2011 uma ambição excessiva de se afirmar como uma potência liderante no Mundo Árabe. Em suma, o Qatar é um bom exemplo de que a dimensão não é tudo na política internacional, e que a abundância de recursos ajuda, mas não dispensa uma boa estratégia global. Veremos se o Qatar demostra nos próximos anos deter outra chave do sucesso na política internacional, a capacidade de perceber que uma boa estratégia nacional não pode ser imóvel, exige capacidade de adaptação e realismo no nível de ambição.