A propósito da saída de Espanha de D. Juan Carlos I, muito se tem falado dos ‘pecados’ do monarca, mas pouco das suas virtudes e quase nada do que Espanha e o mundo devem ao emérito Rei de Espanha. Felizmente, a Conferência Episcopal Espanhola, pela voz da sua Comissão Executiva, houve por bem sair em defesa de D. Juan Carlos de Bourbon.

Nas primeiras linhas deste comunicado, com data do passado dia 4, recorda-se que a Igreja desde sempre rezou pelos governantes: “Recomendo-te, pois, antes de tudo, que se façam súplicas, orações, petições, acções de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, para que levemos uma vida sossegada e tranquila, em toda a piedade e dignidade” (1Tim 2, 1-2).

Terminada a sangrenta guerra civil, Francisco Franco restaurou a monarquia, mas mantendo-se como regente, ou seja, ‘caudillo’. Entendia que, dadas as convicções democráticas do filho e sucessor de Alfonso XIII, D. Juan de Bourbon, Conde de Barcelona, não era este idóneo para aceder ao trono.

Ao desistir da restauração monárquica na pessoa de D. Juan, Franco quis fazê-la na pessoa do seu filho primogénito, D. Juan Carlos. Para o jovem príncipe não foi fácil deixar o Estoril, onde vivia com seus pais e irmãos, para ir viver em Espanha, mais próximo de quem era, afinal, o usurpador do trono que devia pertencer a seu pai, o Conde de Barcelona. D. Juan aceitou que o seu filho primogénito e eventual sucessor fosse educado em Espanha, mas sem desistir dos seus direitos dinásticos. Mas Franco não teve pudor em usar o filho contra o pai, quando o nomeou seu sucessor, como rei de Espanha.

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Juan Carlos I foi, efectivamente, proclamado rei pelas cortes do ‘caudillo’, mas poucos eram os que então lhe auguravam um longo reinado. Tinha contra ele os franquistas e a maioria dos monárquicos. Os herdeiros políticos do Generalíssimo duvidavam da fidelidade de Juan Carlos ao regime franquista e a História deu-lhes razão, porque o agora Rei emérito, logo que foi possível, promoveu a transição política para uma democracia constitucional. Os monárquicos também o não apoiaram inicialmente, por entenderem que o pai, o Conde de Barcelona, é que deveria ser o legítimo rei.

Não obstante a fragilidade da sua situação política, agravada pelas convulsões independentistas de bascos e catalães e algum descontentamento militar, Juan Carlos de Bourbon logrou não apenas institucionalizar, pacificamente, uma democracia constitucional, como manter a unidade de Espanha. Ao promover uma Constituição em que os seus poderes ficaram praticamente reduzidos a funções protocolares e de representação – nas monarquias constitucionais o rei reina, mas não governa – Juan Carlos soube, para o bem de Espanha, prescindir do poder que tinha herdado de Franco e que lhe teria dado maior protagonismo político.

Contudo, não houve qualquer tibieza no desempenho das suas funções régias, como se viu no fracassado golpe militar de 23 de Fevereiro de 1981, em que a intervenção do monarca contra os golpistas, alguns deles seus amigos de longa data, foi decisiva. Não estranha, portanto, que a Conferência Episcopal Espanhola, “ante a notícia da saída de Espanha de Sua Majestade D. Juan Carlos I, queira expressar o respeito pela sua decisão e o reconhecimento pela sua decisiva contribuição para a democracia e a concórdia entre os espanhóis.”

Na verdade, foi a pulso que Juan Carlos I conquistou a admiração da grande maioria dos espanhóis. Supondo que a sua permanência no trono seria prejudicial para Espanha, abdicou no seu filho, o actual Rei Filipe VI. Foi uma atitude de grande patriotismo e desinteresse pessoal pois, como rei em exercício, gozava de total impunidade. Esse seu gesto recorda o momento em que seu pai, o Conde de Barcelona, nele renunciou aos seus direitos históricos para que, à sua nomeação pelo anterior chefe de Estado, acrescesse a legitimidade histórica, que só por morte ou renúncia de seu pai poderia herdar.

Juan Carlos I teve o bom senso de reduzir a família real à mínima expressão: apenas o casal real e os seus três filhos. Também não reinstaurou a corte, preferindo uma casa civil e militar que é bem mais barata do que muitas presidências da República. Com efeito, quando o orçamento da Casa Real espanhola era de 7.885.150 euros, o da presidência da República Portuguesa era mais do dobro: 15.812.240 euros!

É verdade que Juan Carlos I não é, ao que parece, nenhum santo. Mas, teria que sê-lo?! É curioso que, os mesmos que tanto defendem a laicização do Estado, são os primeiros que se escandalizam com os alegados ‘pecados’ do monarca. Com certeza que se espera de um rei emérito outro tipo de atitudes, quer no que respeita às suas amizades particulares – os monarcas não têm vida privada, porque toda a sua existência, vivida ao serviço da nação, deve ser pública – como no que se refere aos seus negócios, que não deveriam ser outros que não fossem os do bem comum. Mas questionar a monarquia, por causa dos comportamentos de Juan Carlos I, faz tanto sentido como, por causa dos escândalos de Nixon, Fillon e Sócrates, entre outros, pôr em causa a república.

O episcopado espanhol, entendendo a saída de Espanha de Juan Carlos I como mais um serviço que o rei emérito prestou a Espanha e a Filipe VI, também quis “manifestar a sua adesão e agradecimento ao actual Rei, pelo fiel cumprimento dos princípios constitucionais e pela sua contribuição em favor da convivência e bem comum de todos os espanhóis.

Espanha deve muitíssimo a Juan Carlos I. Deve-lhe a transição pacífica do regime franquista para a democracia constitucional; deve-lhe a liberdade para todos os partidos políticos, também republicanos e comunistas; deve-lhe a defesa da democracia contra os golpistas de extrema-direita; deve-lhe a integração do país na Europa livre; deve-lhe a firmeza na luta sem quartel contra o terrorismo da ETA; deve-lhe o prestígio que tem em inúmeros fóruns internacionais; deve-lhe a Constituição de 1978, que garante a unidade nacional, no respeito pelas diversas nacionalidades e autonomias.

Agora, que os abutres acossam, sem dó nem piedade, o fundador da democracia espanhola, é justo que se oiça, pela voz do episcopado do país vizinho, uma palavra de reconhecimento e gratidão, que é também uma chamada de atenção para a importância da instituição monárquica, principal garante da democracia e da unidade de Espanha. Depois de assegurarem as suas orações por D. Juan Carlos I, pela família real e por todas as autoridades do país, os bispos espanhóis expressam o seu desejo de que “se possa viver com saúde, paz e prosperidade e se faça visível na nossa sociedade o Reino de verdade e de vida, o Reino de justiça, de amor e de paz.” Assim seja.

Portugal, que foi o país que outrora recebeu Juan Carlos, como Príncipe das Astúrias, deveria agora acolhê-lo de novo, como Rei emérito. Nesta hora, tão amarga como o seu primeiro exílio, seja esta terra, que sempre amou como se fosse a sua segunda pátria, a prestar-lhe a homenagem que muitos dos seus súbditos lhe negaram, mas que indiscutivelmente merece.