Em As Identidades Assassinas, o escritor Amin Maalouf procura compreender o fenómeno complexo da identidade, considerando o crescimento das animosidades civilizacionais que eram já notórias no final do século XX e que se agravaram no novo século. De acordo com Maalouf, o ressentimento que certas identidades sentem pela modernidade e pelo Ocidente deve-se ao facto de este ter avançado muito rapidamente, em resultado das enormes proezas científicas e tecnológicas da modernidade, enquanto as restantes civilizações pareciam estagnar – o que gerou um forte conflito entre modernização e identidade: “Como podemos modernizar-nos sem perder a nossa identidade?; Como assimilar a cultura ocidental sem renegar a nossa própria cultura?; Como adquirir o saber-fazer do Ocidente sem ficar à sua mercê?”

O avanço tecnológico e científico legitimou, de facto, o processo de colonização do século XIX, entendido como a missão dos europeus enquanto projeto civilizador, e deu origem à oposição entre povos civilizados e povos bárbaros ou primitivos – embora, e como sempre acontece no trama complexo da vida real, esta visão tenha convivido com uma romantização dos povos selvagens, muito na tradição de Jean-Jacques Rousseau e do seu elogio, no Segundo Discurso, à liberdade dos selvagens por oposição às dependências, sociais e materiais, dos civilizados.

Esta missão civilizadora do Ocidente partia da ideia de que os valores e o conhecimento europeus eram universais e objetivamente bons, pelo que deveriam ser adotados globalmente, não só em termos ético-políticos (e é por isso que falamos em Declaração Universal dos Direitos Humanos), mas também em termos científicos, com as universidades a adotarem os princípios, as teorias e os valores da ciência moderna. A consequência foi ter-se relegado para as margens outras tradições e formas de conhecimento – fenómeno que Boaventura de Sousa Santos designa como epistemicídio.

Como vimos na Parte I, é esta mentalidade colonialista que os estudos pós-coloniais pretendem desconstruir para que se possa afirmar uma descolonização completa – pelo que o argumento identitário exige o reconhecimento de que a Razão, a Ciência e o Conhecimento são fruto, não de conquistas humanas universais, mas do Ocidente e da branquitude. Como tal, os princípios de justiça social exigem uma revisão conceptual da natureza e conteúdo do conhecimento, bem como dos seus modos de produção.

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As ferramentas do amo

A ideia de revisão conceptual é regularmente representada pela frase da poetisa Audre Lorde de que as ferramentas do amo nunca poderão desmantelar a casa do amo: para a visão identitária, é necessário amadurecer novas formas de falar e pensar para que o processo de descolonização se efetive. E no que diz respeito ao conhecimento, isso passaria por abandonar aquilo que Grada Kilomba designa como os três mitos do Ocidente branco: o mito do universal, o mito da objetividade e o mito da neutralidade.

De acordo com o pensamento pós-colonial e descolonizador, o conhecimento tem um caráter essencialmente subjetivo, ou seja, o nosso modo de conhecer depende do modo pessoal como experienciamos a realidade e não pode, por isso, ser reconduzido a uma experiência universal. Já abordamos este argumento a propósito do conceito de lugar de fala e das chamadas standpoint theories, ou teorias do ponto de vista, que defendem a ideia de que a nossa posição social condiciona o modo como percecionamos e experienciamos a realidade, pelo que a nossa identidade constitui a fonte de um conhecimento específico.

Partindo deste argumento, o que o pensamento pós-colonial defende é que 1) não é possível falar em conhecimento universal, na medida em que não há uma experiência única do mundo e da realidade; 2) se a experiência depende da nossa identidade também não somos objetivos quando fazemos ciência: limitamo-nos a formalizar a nossa experiência pessoal; 3) e isto significa que também não há neutralidade, porque a nossa visão depende dos interesses que são mais favoráveis à nossa identidade.

Este raciocínio está no cerne do pensamento pós-colonial, como podemos ver no manifesto do movimento Rhodes Must Fall. Dizem estes ativistas que:

É absurdo que pessoas brancas tenham alguma coisa a dizer sobre se a estátua deve permanecer ou não, pois elas nunca poderão empatizar com a violência profunda que é exercida sobre a psique dos estudantes negros. A nossa dor e nossa raiva estão no centro da razão pela qual a estátua está a ser questionada, logo esta dor e esta raiva devem ser respondidas de um modo que apenas nós podemos definir.

A consequência aqui defendida está em sintonia com a ideia de experiência subjetiva do mundo: só aqueles que são alvo de violência podem compreender verdadeiramente essa violência e por isso apenas estes podem decidir que atos são necessários para terminar/corrigir essa violência. E tratando-se de uma experiência subjetiva, as emoções assumem um lugar central na discussão pública: raiva e dor substituem as obsoletas ferramentas racionais centradas em argumentos e factos. Assim, continua o manifesto:

Deve ser sublinhado que a pressão para o diálogo acerca da estátua reflete a normalização perturbadora da colonização e da supremacia branca na UCT. Que a presença de Rhodes seja vista como debatível mostra que a gestão [da universidade] não leva seriamente em consideração a terrível violência realizada contra as pessoas negras histórica e presentemente.

Importa reforçar a conclusão da perspetiva subjetiva: se tudo depende da nossa experiência pessoal, então o diálogo e o debate tornam-se inaceitáveis.

A impossibilidade de diálogo

Esta parece-me ser a mais perigosa consequência do argumento identitário: ele esvazia a possibilidade de diálogo. E não digo isto naquele sentido hoje quase trivial de que a sociedade está muito polarizada e as lutas culturais (que são identitárias) impedem o diálogo. Digo-o em sentido académico, não esquecendo que o fito dos movimentos pós-coloniais é descolonizar as universidades. Vejamos porquê.

O trabalho académico, independentemente da área a que nos referimos, traduz-se essencialmente num jogo de dar e pedir razões (para roubar a expressão de Wilfrid Sellars) sobre um determinado assunto. Essas razões podem ter um caráter mais quantitativo, como acontece nas chamadas ciências duras, e traduzir-se numa linguagem mais rígida, até numérica; ou podem ter um caráter mais qualitativo, e ganhar forma numa linguagem mais literária. Mas o jogo é o mesmo desde a Antiguidade, como Hannah Arendt chama a atenção em Verdade e Política:

“A procura desinteressada da verdade tem uma longa história; a sua origem precede, de modo característico, todas as nossas tradições teóricas e científicas, incluindo a nossa tradição do pensamento filosófico e político. Penso que é possível fazê-la remontar ao momento em que Homero decidiu cantar as ações dos Troianos não menos que a dos Aqueus, e celebrar a glória de Heitor, o adversário e o vencido, não menos que a glória de Aquiles, o herói do seu povo. Isso nunca tinha acontecido antes [… e] é a raiz daquilo a que se chama objetividade – essa paixão curiosa, desconhecida fora da civilização ocidental, pela integridade intelectual a qualquer preço. Sem ela nenhuma ciência teria podido existir.”

Esta paixão pela integridade intelectual foi aperfeiçoando o jogo de pedir e dar razões, avaliando a força dos argumentos. O problema, quando passamos para uma perspetiva identitária, é que a avaliação deixa de ser feita à força dos argumentos para passar a ser feita à autoria dos argumentos. E quando fazemos esta passagem, aquele jogo deixa de ser possível. Utilizarei dois exemplos para tornar esta ideia clara.

O primeiro resulta de uma linha de trabalho recorrente no domínio identitário que é a exploração do racismo quotidiano, como Grada Kilomba faz em Memórias da Plantação. De acordo com esta perspetiva, os atos de racismo dependem de uma validação meramente subjetiva da vítima, não se exigindo qualquer prova que possa ser avaliada externamente. A consequência é que, se alguém objetar que não se tratou de uma situação de racismo ou questionar a interpretação que foi dada ao acontecimento, esse ato de objeção ou questionamento é entendido ele mesmo como um ato de racismo. Não há como avaliar a força dos argumentos, uma vez que o juízo tem uma validação meramente pessoal e aí só releva a autoria.

O segundo exemplo faz-nos regressar à polémica em torno da leitura de Os Maias, de Eça de Queiroz, realizada por Vanusa Vera-Cruz Lima em 2021. Propondo-se ler a obra a partir de uma lente pós-colonial, a doutoranda identificou uma série de passagens racistas e recomendou a utilização de notas pedagógicas pelos professores na sua lecionação. O mundo da análise e crítica literárias pode ser bastante fervoroso (até em Portugal) e, por esse motivo, não é surpreendente que a sua posição e sugestão tenham sido sujeitas a críticas e objeções. Trata-se, na verdade, do processo habitual de discussão literária (e que replica o domínio académico): as ideias são lançadas no espaço público e sujeitas a críticas (todos nós acompanhamos o trabalho permanente de João Pedro Marques) – é o tal jogo de pedir e dar razões. Mas a resposta de Vanusa, num seminário sobre a descolonização do cânone literário, é de título diferente: desvalorizou as críticas não por serem argumentos fracos, mas porque “as pessoas que me criticaram têm cor e têm classe, com muito privilégio”. A possibilidade de trocar argumentos fica assim esvaziada, pois o que releva é a autoria.

(O facto de Vanusa ter reconhecido, naquele mesmo seminário e com uma candura estarrecedora, que só tinha lido um (1) livro de Eça levanta toda uma outra série de reflexões que se prendem com o conceito de mérito, mas isso ficará para outro momento.)

Assim, o paradigma identitário (e quanto de Thomas Kuhn se aplica aqui?) afasta a possibilidade de utilizarmos as ferramentas que foram aperfeiçoadas durante séculos, como o raciocínio lógico, a procura pela objetividade, o conhecimento como troca de argumentos e explicações. Em contrapartida, deveremos valorizar as emoções e a interpretação pessoal e subjetiva para validar as experiências da realidade, sem que elas sejam sujeitas a discussão, dúvida, contraditório. Afinal, como Grada Kilomba diz, “explicar é fomentar uma ordem colonial.” Mas quando não podemos conversar sobre as coisas, o que resta é violência e é por isso que a fresta que o paradigma identitário nos abre para o seu mundo é tão assustadora.

PS: Entrevistei o poeta e crítico literário Eduardo Pitta na Festa da Poesia de Matosinhos, em janeiro de 2022. Cheguei nervosa, com medo daquele nome grande da crítica literária que parecia conhecer todos os grandes nomes e com medo de não conseguir dizer até ao fim, e sem corar, o poema “Nunca me tinhas dito: um quarto assim”. Mas o Eduardo foi uma simpatia e a lição que me marcou não foi literária, mas outra, ainda maior: discordando dos exageros sanitários que a pandemia ainda impunha, disse-me: “não se pode viver com medo”. Nesta frase estava, na verdade, toda a sua obra e toda a sua biografia, como contada em Um rapaz a arder. Era um espírito livre e corajoso e espero que tenha vivido até ao último momento sem medo de viver.

O mês de agosto será de descanso, para que nos possamos dedicar a leituras mais ligeiras e chegar a setembro intelectualmente mais revigorados para os exigentes desafios filosóficos dos nossos dias. Desejo a todos os leitores umas boas férias!