1 A pergunta

Um dos aspetos mais intrigantes dos nossos dias é o facto de a pergunta “O que é uma mulher?” se ter tornado uma questão política tão relevante no mundo anglo-americano. Não estou a falar do sentido filosófico da pergunta (já lá vamos), e se lhe parece óbvio que uma mulher é um ser humano do sexo feminino é melhor ter calma. Quando a revista Time decidiu, em 2020, homenagear 100 mulheres (considerando que a alteração do reconhecimento Man of the Year para Person of the Year não era suficiente) fez acompanhar o projeto de um texto intitulado “What Does It Mean to Be a Woman? It’s Complicated” [O que significa ser uma mulher? É complicado] Complicado? Bem-vindo ao século XXI.

Nos Estados Unidos, a pergunta é central para as lutas culturais, sobretudo em resultado da infiltração das teorias de género nas escolas:  foi colocada à juíza nomeada por Joe Biden para o Supremo Tribunal de Justiça, Ketanji Brown Jackson, que afirmou não conseguir responder por não ser bióloga, e foi tema de um documentário do comentador político conservador Matt Walsh. Mas é no Reino Unido que a discussão é mais acesa, o que não surpreende se considerarmos a longa tradição britânica na luta feminista, ao que acresce a visibilidade de J.K. Rowling, que desde o final de 2019 se colocou no centro da polémica.

Nos últimos anos, a disputa no Reino Unido tem decorrido em torno do Gender Recognition Act (2004), que tem sido alvo de recomendações de correção desde 2016. Essas alterações passariam por facilitar o processo de transição de género, dispensando o diagnóstico médico e avançando para um princípio de autoidentificação. O tema é fraturante em quase todos os partidos (mesmo entre os Tories, como as posições de Theresa May, Justine Greening ou Penny Mordaunt demonstram), mas é sobretudo no interior do Partido Trabalhista que o conflito tem sido mais dramático. Por que razão?

Como já tenho apontado, a maioria dos direitos reivindicados pela agenda trans entra em conflito com direitos das mulheres, o que dá lugar a um agon muito concreto: como o Labour acolheu tradicionalmente os movimentos feministas e tem acolhido, mais recentemente, aquela agenda, o embate entre estas duas fações tem sido extremamente virulento e, acima de tudo, tem criado divisões insuperáveis no partido.

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Talvez o momento mais importante desta tensão tenha sido em fevereiro de 2020, quando, em plena campanha para a nova liderança do Labour, foi criado um grupo de pressão para direitos trans e não-binários: o Labour Campaign for Trans Rights. No seu manifesto publicado no Tribune, este grupo estabeleceu como objetivos comprometer o Partido Trabalhista com a defesa das pessoas trans e resistir às forças transfóbicas que dentro do partido tentavam minar o seu direito à dignidade. Para esse efeito, apelaram à subscrição de um compromisso com as suas reivindicações – uma espécie de juramento, que foi feito pelas candidatas Rebecca Long-Bailey e Lisa Nandy, embora não por Keir Starmer. Mas, acima de tudo, os promotores desta campanha tinham em vista fragilizar um grupo de enorme importância dentro do Labour, o Woman’s Place UK, promotor dos direitos das mulheres, e fizeram-no defendendo o método habitual deste tipo de movimentos: apelando à expulsão do partido de todos os que discordam da sua agenda. Esta pressão acabou por originar uma reação viral no Twitter, com muitas militantes do Labour a manterem a sua posição, usando de modo provocatório a hashtag #ExpelMe.

Foi este clima de guerra civil que Keir Starmer encontrou quando venceu as eleições para a liderança do Partido Trabalhista em abril de 2020. E se começou por afirmar que não é correto dizer que apenas as mulheres têm colo do útero (2021), que as mulheres trans são mulheres (2022) e que 99% das mulheres não têm pénis (2023), tem agora procurado moderar essas posições, garantindo que os direitos das mulheres não serão revertidos. É tentar fazer a quadratura do círculo, mas Starmer quer evitar o erro cometido por Nicola Sturgeon, que, ao pressionar a sua Gender Recognition Reform (GRR) até ao travão imposto pelo Governo de Rishi Sunak, provocou fortes reações sociais e divisões dentro do próprio partido. Esta tem sido apontada como uma das razões para o seu afastamento e dividiu os candidatos à liderança do SNP, com a vitória de Humza Yousaf, favorável à GRR.

Considerando todo este contexto, não é surpreendente que o atual primeiro-ministro da Nova Zelândia, Chris Hipkins, que sucedeu à assustadora Jacinta Ardern em janeiro deste ano, tenha sido confrontado há dias sobre o seu entendimento do que é uma mulher. Sintomática é a sua dificuldade em responder: ou, nas palavras de Suzanne Moore, “When did ‘woman’ become the hardest word to define?” [Quando é que “mulher” se tornou a palavra mais difícil de definir?].

2 A resposta

Filosoficamente, a reflexão sobre o que é uma mulher marcou todo o pensamento feminista ao longo do século XX e era promovida de forma quase obsessiva nos encontros entre mulheres, muito populares nas décadas de 1960 e 1970, em que se procurava escalpelizar a natureza da experiência feminina. Esse processo de autorreflexão não era injustificado: se a voz da mulher ganhava um novo espaço na esfera pública e política, era normal que se tentasse compreender que voz era essa e o que a distinguia da voz masculina, nomeadamente considerando os problemas e perspetivas que eram especificamente femininos e haviam sido silenciados.

Esta reflexão era naturalmente promovida a partir de um corpo e de uma biologia que distinguia homens e mulheres – e foi a partir desse corpo e dessa biologia que se constituíram muitos dos direitos e liberdades conquistados pelas mulheres nas últimas décadas. Mas essa base foi destruída a partir do próprio pensamento feminista, com a introdução da designada teoria queer nos anos de 1990 (tema para um próximo texto). De facto, na medida em que o pensamento queer procura dissolver fronteiras e identidades, nomeadamente entre homem e mulher, anula a referência biológica e remete tudo para o género e a construção social. E, se assim é, caberia a cada pessoa, através de uma decisão exclusivamente individual, determinar a sua identidade.

Entramos aqui (e novamente) no domínio identitário, com todos os perigos que o têm caracterizado: mais do que refazer questões, a perspetiva identitária procura delimitar o que pode ser perguntado e como deve ser perguntado (tanto na esfera pública, como na esfera privada). A consequência é evidente: quem ousa hoje falar da mulher enquanto ser do sexo feminino (ou seja, remetendo para uma dimensão biológica) deve ser silenciado. É o que acontece quando se exige que pessoas que pensam de forma diferente sejam expulsas do partido, ou quando se tenta impedir que pessoas-que-pensam-coisas-inaceitáveis se expressem no espaço público.

Foi o que sucedeu a Kellie-Jay Keen, mais conhecida como Posie Parker, na sua digressão pela Nova Zelândia. O que faz esta terrível ativista pelos direitos das mulheres? Promove encontros públicos em que as mulheres… falam: Let Women Speak. Trata-se, obviamente, de um pecado capital, pelo que Posie Parker foi recebida com esta violência em Auckland – uma reação julgada por muitos como adequada face ao perigo que as palavras comportam.

A única forma de responsabilizar os atores políticos por estas ações e reações é pressioná-los com perguntas incómodas, como o seu entendimento do que é uma mulher. E foi isto que o jornalista Sean Plunket fez a Chris Hipkins, uma motivação que está muito para além da notícia manifestamente parcial que o Observador publicou sobre o assunto.