1 O silenciamento político das mulheres

Entre os argumentos feministas mais populares dos nossos dias, encontramos a ideia de que há um silenciamento das mulheres na esfera pública. Em Mulheres & Poder, a historiadora clássica Mary Beard diz-nos que a compreensão desse silenciamento passa pelo conhecimento das tradições herdadas da Antiguidade: “Não exageremos a questão. A cultura ocidental não deve tudo aos gregos e aos romanos, seja em termos de discurso ou de qualquer outra coisa. (…) No entanto, as nossas próprias tradições de debate e de discurso público, as suas convenções e regras, ainda permanecem firmemente na sombra do mundo clássico.”

Com efeito, não só o Renascimento consistiu na recuperação dos valores clássicos, nomeadamente as técnicas de retórica e persuasão da Antiguidade, como também as regras e procedimentos parlamentares modernos se inspiram nas teorias e princípios clássicos. E se “não somos simplesmente vítimas ou joguetes da nossa herança clássica”, a verdade é que “as tradições clássicas [nos] forneceram um poderoso modelo com o qual pensamos acerca do discurso público e decidimos o que conta como boa ou má oratória, persuasiva ou não, e a quem pertencem os discursos que devem ter espaço para serem ouvidos”.

Beard considera que esse modelo exclui as mulheres do espaço público, como retratado pela comédia de Aristófanes que fantasia sobre a tomada da governação do Estado por parte das mulheres: “Parte da piada residia no facto de as mulheres não serem capazes de falar adequadamente em público – ou antes, não conseguirem adaptar o seu discurso privado ao sublime idioma da política masculina.” Este sentido ecoaria na ideia de que as mulheres representam o mundo das emoções, cabendo ao homem o domínio da racionalidade. E na medida em que o espaço político deveria assentar na troca racional de ideias, isso justificaria a exclusão feminina de um terreno que se pretendia marcado pelo logos.

Com a modernidade e a transformação da democracia em representativa, o Parlamento passou a assumir esse lugar de ponderação da razão pública: o forum de discussão política, que garantiria um debate racional, pacífico e pluralista, protagonizado pelo homem moderno universal e a sua razão transcendental. O mecanismo de representação seria o instrumento primordial desse funcionamento democrático, na medida em que garante o afastamento da emoção e da parcialidade na busca por essa razão pública, permitindo discordar racionalmente até se chegar a um compromisso. A dinâmica democrática, vivendo sempre no limite da demagogia e da manipulação, encontra a sua execução perfeita quando garante o paradigma da razão sobre a emoção, a dissolução pacífica dos desentendimentos sobre o conflito permanente, os compromissos coletivos sobre os interesses parciais.

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2 A revolta das emoções

O argumento de que o modo de pensar feminino está inerentemente ligado às emoções (e que levantou historicamente dúvidas sobre se as mulheres seriam capazes de fazer uso de uma linguagem adequada ao espaço público) pareceria, no século XXI, obsoleto. Mas, estranhamente, a sua popularidade parece estar a crescer.

Utilizemos como exemplo o implausível bestseller de Pauline Harmange, Detesto os homens, publicado recentemente entre nós. Neste curto manifesto, a blogger ativista faz a defesa das emoções como motor político, considerando que as mulheres devem sustentar a sua posição política na dinâmica que nasce da raiva e chega à misandria.

Invertendo o caminho civilizacional que temos percorrido, Harmange entende que o desprezo pelos homens, quer enquanto grupo coletivo, quer enquanto elemento individual, é uma postura política não só necessária como salutar: “durante muito tempo, a nossa raiva de mulheres não se pôde expressar na qualidade de raiva feminista. Como as emoções fortes não são muito bem vistas, sobretudo quando vêm de mulheres, foi preciso bastante tempo para que se reabilitasse essa raiva feminina. Ela está a encontrar o seu lugar, a libertar-se do tabu que a rodeia há séculos.”

O argumento apresentado por Harmange está embebido no vocabulário que se popularizou na última década de lutas culturais: a mulher é vítima de um sistema patriarcal e a única forma de se libertar da opressão sofrida desde o início dos tempos é destruindo a organização social tal como a conhecemos. Mas o seu básico manifesto não perde tempo com argumentos teóricos sólidos. A sua preocupação passa apenas por tentar libertar a raiva das mulheres e legitimar essa raiva no espaço público, exaltando a virtude das emoções em detrimento da lógica racional e argumentativa:

“Os homens que escolhem o terreno da razão, por oposição às emoções, colocam-se numa posição de autoridade. Só os dominantes podem dar-se ao luxo de ser razoáveis e calmos em qualquer circunstância, uma vez que não são eles quem sofre. Não ouvir as emoções de um interlocutor é uma escolha: a de não querer compreender a sua origem e recusar a ideia de que se possa ser responsável por ela.” E nesse sentido, “devemos acarinhar esse lugar e atiçar no peito o fogo da nossa raiva, que exige justiça, que exige conserto, que nos intima a não ceder à resignação.”

No entanto, a convocação das emoções como motor político é não só um ato perigoso, como a história demonstra, como é também profundamente antidemocrático, porque tende a eliminar o pluralismo e a silenciar o outro. De facto, diz-nos Harmange: “O mínimo que um homem pode fazer face às mulheres com um discurso misândrico é calar-se e ouvir. Aprenderia muitas coisas e sairia da experiência mais enriquecido.” Infelizmente, os movimentos identitários que pululam no espaço público vivem deste espírito, reclamando muitas vezes uma legitimidade social e política para aquilo que, em bom rigor, corresponde a um discurso de ódio: “Detestar os homens, enquanto grupo social e frequentemente também na qualidade de indivíduos, enche-me de alegria…”

3 A resistência

Este tipo de narrativa e as bases discursivas que potenciam o seu crescimento têm pautado o espaço público atual. Com efeito, as reivindicações daquilo que designaremos por neofeminismo invadiram o quotidiano e vemo-nos constantemente bombardeados com novos termos ou redescrições de velhos termos que nos são impostos para lermos o mundo. Não é, por isso, surpreendente que a maioria dos livros dedicados à temática da “igualdade de género” venha acompanhada de um glossário que permita ao leitor familiarizar-se com o vocabulário oficial da nova narrativa. Expressões e termos como “igualdade de género”, “assédio sexual”, “violência de género”, “queer” ou “cisgénero” são apresentados pelos ativistas para moldar o novo mundo. O efeito provocado não deve ser negligenciado: o leitor sente que está em falta, que o conhecimento e a sociedade estão a avançar e ele está a ficar para trás. Perante esta sensação, as ativistas assumem confortavelmente o papel de vanguarda: cabe-lhes iluminar os restantes mortais, fazer com que compreendam.

Perante esse acesso privilegiado à verdade, o espaço para vozes de resistência tem vindo a reduzir-se progressivamente – mas ainda existe. Interpelada pela invasão em França do discurso neofeminista marcado pela componente sexual e que cavalga o ímpeto do ódio aos homens, a filósofa francesa Bérénice Levet assume a parole da resistência. Em Libertem-nos do feminismo! As novas inquisições, a autora apresenta duas linhas de reflexão principais, que apresentaremos brevemente: a defesa da identidade francesa e das suas tradições e o elogio da sexualidade.

Embora reconheça que “a minhoca do ódio aos homens, da guerra dos sexos, da criminalização do desejo e da sexualidade masculina” já se encontra na maçã do feminismo clássico, o alvo de Levet é o neofeminismo que tem sido indiscriminadamente importado dos Estados Unidos. Com humor, Levet recorda que “este feminismo que ganha terreno em França é uma espécie de volta do bumerangue, pois o feminismo à americana está impregnado de French Theory: alimentou-se dos trabalhos, das teorias dos pensadores franceses da desconstrução, que não encontravam público em França.”

O problema é que, no regresso, esse bumerangue determinou um feminismo que ataca diretamente a identidade e as tradições republicanas francesas. Isso acontece porque o feminismo norte-americano se caracteriza por ser “diferencialista, separatista, repressivo, vitimário” – o mesmo é dizer, por estar trajado com as vestes identitárias que têm caracterizado a política norte-americana das últimas décadas. E essa dimensão identitária opõe-se à tradição republicana da universalidade, nomeadamente a herança de mixidade dos sexos, que permitiria um feminismo universalista. Na opinião de Levet, esta tradição republicana é um legado de que os franceses se devem orgulhar:

“O feminismo ataca a nossa herança, acusada de ser falocrática, dominadora, inimiga das mulheres. Como se pode, com tal ligeireza, com tal despreocupação, instruir o processo de uma civilização tão pródiga em maravilhas? A partitura que a França compôs sobre o tema, universal, das relações entre homens e mulheres é um dos nossos tesouros, uma das nossas exceções.”

Levet posiciona-se, assim, contra o comunitarismo de estilo norte-americano que ela considera assentar no mais profundo individualismo. Esse modo identitário de considerar a vivência social promove uma introspeção individualista que se traduz “num estreitamento da existência”. E quando enveredamos nesse caminho de estreitamento, perdemos a possibilidade de nos descentrarmos de nós mesmos e de participarmos em algo maior. Em sentido contrário, a política deve servir para que “o indivíduo [seja] libertado de si mesmo, da estreiteza do seu eu, das suas idiossincrasias, a fim de ser livre para algo maior do que ele, a saber, a nação, o Bem Comum”.

Reconhecendo o valor dessa identidade e dessa tradição, as francesas deveriam resistir “ao feminismo repressivo, puritano, para preservar a arte de viver que constitui o nosso génio” e orgulhar-se da sua identidade enquanto “pátria da galantaria, da libertinagem, pátria literária, essa é a nossa reputação, quando outros se destacam pela sua economia”.

Essa resistência passaria por olhar criticamente para movimentos como o #metoo ou, na versão francesa, #balancetonporc: “O que nos aconteceu? Como passamos a ver com suspeição, obsessão e repugnância tudo o que se relaciona, de perto ou de longe, com a sexualidade?” Enquanto seres encarnados, com um corpo que vive com outros corpos e que pode, por isso, ser alvo dos seus olhares e do seu desejo, devemos assumir sem complexos a nossa sexualidade e a nossa vontade, ao invés de tentar criminalizá-las. Afinal, e “sob pena de mais uma vez frustrar a imagem de inocentes que as feministas gostam de fazer das mulheres, nós não desejamos menos do que os homens que esse delicioso jogo da sedução acabe no corpo a corpo que é a sexualidade”.

As neofeministas têm introduzido novas palavras e reinterpretado categorias, colocando no mesmo saco verdadeiras violações e tentativas de sedução, com o objetivo de modificar a perceção deste jogo. Mas, ao tentar fabricar um mundo diferente, limitam-se a tornar o nosso mais pobre: “O facto de sermos designadas como ‘o belo sexo’ não tem nada de ofensivo; pelo contrário, dá-nos uma responsabilidade. Quem gostaria de viver num mundo sem beleza?”

4 Libertem-nos deste feminismo

O elogio da sedução e da sexualidade promovido por Levet recorda a carta publicada no Le Monde, em janeiro de 2018, e remete para uma discussão especificamente francesa. Mas encontramos, na sua resistência, argumentos essenciais para analisarmos as reivindicações feministas atuais.

O primeiro deles prende-se com a conivência do neofeminismo para com um mundo cada vez mais esvaziado de relações pessoais, que tem sido criado pela tecnologia digital e que a pandemia veio a agravar: “Ao criminalizar o desejo masculino e a sua expressão no espaço público, nas relações entre colegas, será que se apercebem do que estão a fazer? Não foram já demasiado longe na abstração e na desencarnação das relações humanas? Desejaremos mesmo que os homens deixem de olhar para os lados, que passem a ignorar, a desprezar, a abstrair-se cada vez mais dos seres de carne (feminina) que os rodeiam, para se concentrarem nos seus ecrãs?” Será o admirável mundo novo da existência virtual, que o neofeminismo tem ajudado a aprofundar, o mundo que desejamos?

Em segundo lugar, importa considerar as consequências de um discurso de bestialização. Quando as neofeministas reduzem o homem a uma natureza de bestialidade, estão a espelhar o argumento que tanto censuram no machismo e que teria levado a que a mulher fosse silenciada no espaço público. Repetir na nossa narrativa o argumento que criticamos no nosso opositor não é, por princípio, um bom argumento. Mas, para além disso, este tipo de narrativa demonizadora provoca, como reação, o surgimento de grupos simétricos que assentam na mesma lógica do ódio e do desprezo, agora contra as mulheres. Na verdade, um discurso de ódio está condenado a gerar discursos de ódio: podem as neofeministas eximir-se desta responsabilidade?

Em terceiro lugar, devemos levantar sérias dúvidas a que as emoções tenham um lugar central na esfera pública. As emoções têm, naturalmente, uma função fundamental e os estudos mais recentes, levados a cabo, entre outros, por António Damásio, demonstram como as emoções são centrais no processo de avaliação e deliberação. E todos aqueles que estudam retórica sabem que a conquista emocional é tão ou mais importante do que a conquista racional e argumentativa. Mas reconhecer o papel das emoções no nosso pensar é radicalmente diferente de defender uma primazia das emoções no espaço público. Todos sabemos, por experiência própria, que as emoções nos impedem de empreender um diálogo frutuoso e chegar a compromissos – ora, este é o objetivo principal da política moderna, de que nos consideramos herdeiros: queremos abdicar dele?

Por fim, o principal problema deste neofeminismo reside no facto de ter florescido no atual paradigma de vitimização. Parecemos viver hoje num momento inverso ao movimento das Luzes. Se nesse período, que consideramos ser o fundador da contemporaneidade política, o espírito era o da emancipação – pensemos no Sapere aude! kantiano: ousa saber para que te possas emancipar de todas as autoridades –, o lema agora é o inverso: deixa-te conduzir pela vanguarda ativista para que possas entrar no caminho da vitimização. E esse paradigma invade hoje todos os domínios sociais, chegando até à categoria de vitimização masculina, como podemos encontrar no livro de Nelson Marques, Os homens também choram. Histórias da nova masculinidade.

Contra esse paradigma, Levet pergunta: “Como pode alguém, dizendo servir as mulheres, atrever-se a pintá-las como perfeitas idiotas, como completas inocentes?” Aqui reside a principal razão para nos libertarmos deste tipo de feminismo, “que já não é mais do que uma máquina de infantilização e estupidificação, de vigilância e punição.”

Se as mulheres precisam de alguma coisa (e isso é uma outra questão), não é certamente de uma narrativa que assenta num discurso de ódio para com o seu semelhante (sujeito, como ela, a alegrias e angústias, conquistas e sofrimentos) e que as vitimiza e infantiliza. Como diz Salman Rushdie, em O Último Suspiro do Mouro: “Somos maiores que esta prisão. Não devemos deixar-nos encolher para cabermos entre estas paredes.”