Desde o início da semana que as medidas do Orçamento de Estado para 2022 (OE 2022) dominam a actualidade. Compreende-se: não faltam motivos para discussões — as taxas e taxinhas, os escalões de IRS, os milhões do PRR. Mas se o objectivo é avaliar o OE 2022, talvez valha a pena começar pelo início. E o início é o próprio processo, com as suas más práticas instituídas.

Não se entende que o governo entregue a proposta de OE 2022 momentos antes do fim do prazo legal. Este ano, o documento chegou cerca de 20 minutos antes da meia-noite. Não é excepção, é quase sempre assim: a coreografia orçamental arranca anualmente com uma corrida contra o cronómetro, na qual prevalece a dúvida sobre se o documento chegará a horas, se o arquivo digital estará completo ou se as tabelas do relatório não terão os habituais erros. Eu sei que isto é uma rotina tão instituída que já poucos estranham. Mas era bom que déssemos todos um passo atrás para vislumbrar melhor: isto é um sintoma de desleixo (fazer tudo em cima da hora) e de desrespeito pelas pessoas, em particular por quem tem de escrutinar o documento — seja na comunicação social, seja nos partidos ou nas empresas, que ficam a trabalhar noite dentro.

Não se entende que um Orçamento que carece de aprovação parlamentar por parte de outros partidos (para além do PS) não seja (aparentemente) alvo de negociação. Assistir ao PCP e ao BE tão surpreendidos quanto o PSD ou o CDS na primeira leitura do documento, na madrugada de segunda-feira, tem de nos intrigar acerca do processo político que levou à concepção deste OE 2022 — ou acerca da estratégia de poder de António Costa. Na sexta-feira passada, o primeiro-ministro garantiu que o OE 2022 tinha ficado fechado. Compreender-se-ia uma entrega tardia, três dias depois, caso estivessem em curso negociações partidárias com vista a garantir a sua aprovação. Mas, pelos vistos, não foi o caso.

Não se entende que o debate público sobre um documento com a relevância política do OE 2022 seja construído simplesmente à base dos valores de reforços orçamentais, como se o dinheiro em si mesmo fosse solução para os desafios de desenvolvimento do país. Há bazuca de fundos europeus, já se sabia. Mas haverá planos e reformas? Como não ficar arrepiado quando o governo anuncia gloriosamente um reforço de 700 milhões de euros para o SNS mas, nas notícias, se multiplicam situações de rupturas e falta de médicos? O mesmo na Educação: com o maior orçamento de sempre no sector, o governo propõe “continuidade” e não tem uma palavra para os desafios mais estruturais do sistema educativo — por exemplo, a renovação do quadro de professores, que até 2030 perderá metade dos efectivos e que, actualmente, leva à falta de professores para assegurar as aulas. Isto já não é só uma oportunidade perdida, é impor sobre as gerações mais novas os vícios de um país que recusa reformar-se.

Não se entende a preguiça que leva a aceitar a propaganda. Seja nos jornais, que publicam o que lhes vem soprado do governo antes da hora, visto que o documento oficial só aparece à meia-noite — veja-se a forma acrítica como o DN faz manchete com os 700 milhões para o SNS, na edição impressa de terça-feira. Seja no debate em geral, onde se tolera a falta de dados essenciais para o escrutínio. Simplesmente, não dá para discutir e escrutinar uma proposta de Orçamento de Estado sem que as entidades públicas divulguem os detalhes da execução orçamental dos anos anteriores. Na Educação, o IGeFE só tem dados da execução orçamental até 2018. O que aconteceu depois, em cada uma das rubricas do orçamento do ministério da Educação? Não se sabe ao certo. E, se não se sabe, como avaliar as opções para 2022? Não dá — anda-se a discutir no vazio, com a perspectiva que interessa ao governo e poucos dados para fazer o contraditório.

Atrasos na entrega, crispação por falta de negociação política, inexistência de reformas, preguiça no escrutínio e ausência de dados de execução orçamental — eis o contexto em que se discute anualmente o Orçamento de Estado. Em Portugal, tem-se este mau hábito da resignação perante o que “sempre se fez assim”, como se a repetição justificasse os erros e as más práticas. Não justifica. Está aqui uma boa oportunidade para sermos mais exigentes com quem nos governa.

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