Chama-se pomposamente “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital” . A Lei 27 de 17 de Maio de 2021 abre inevitavelmente a porta a actos de censura e delação, sob a capa de proteger os cidadãos da “desinformação”. António Barretoem “A inquisição, a censura e o Estado”, José Pacheco Pereira em “A aliança entre os censores e os que assinaram de cruz” e José Manuel Barata-Feyo, provedor do leitor do Público, em “A censura má e a censura boa” são três textos que valem a pena ler sobre a Lei que institucionalizou a censura, aprovada no Parlamento sem votos contra e promulgada sem qualquer reparo pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
As tentações de censura numa lógica de “se não és por mim, és contra mim”, começaram a fazer o seu caminho há algum tempo a esta parte. Facilita-se a vida aos apoiantes do regime, dificulta-se a quem critica, chegando-se ao ponto de denegrir pessoas com carreiras reconhecidas. Veja-se, por exemplo, o que os defensores do poder em exercício disseram de Teodora Cardoso, ex-presidente do Conselho das Finanças Públicas, ou do ex-governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Ou como se viram livres da ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, só para dar os exemplos mais mediáticos.
No diploma agora publicado vale a pena ler o art.º 6º. Começa por criar logo no título um direito, o “Direito à protecção contra a Desinformação”. E diz-nos, sob a capa de princípios europeus, que o Estado vai “proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”. Portanto, o Estado arvora-se com o direito de nos dar o direito de ele Estado nos proteger contra a desinformação – a nova expressão para mentiras ou boatos que são tão velhas como a vida em comunidade.
E o que entende quem aprovou a lei por desinformação? Considera-se “desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”.
Como referem os artigos citados, a publicidade, que regra geral explora os limites entre a verdade e a mentira, encaixa-se perfeitamente no que esta “carta de direitos” considera desinformação. Vamos andar atrás dos anúncios? Mas há aspectos ainda mais graves enquanto uma séria ameaça à liberdade de expressão quando for critica dos discursos oficiais.
Vejamos: a Lei considera desinformação narrativas que ameacem “processos de elaboração de política públicas”, O que significa isto? Criticar uma política do Governo pode perfeitamente encaixar-se na classificação de desinformação. Basta que, na altura, a maioria das pessoas considere verdadeiro e correcto aquilo que o Governo está a fazer para que a critica seja considerada “desinformação”.
Mas há mais. Para incentivar a linha da verdade oficial, diz a Lei, “o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”. Como vai o Estado apoiar isso? E quem classifica as “entidades fidedignas” que vão atribuir os selos de bom comportamento, os selos para os que dizem “a verdade”?
Permitam-me que partilhe a minha experiência. Quando este Governo tomou posse e após as primeiras mensagens e medidas sobre as contas públicas, afirmei por diversas vezes que estávamos perante um exercício impossível, que por esse caminho não se conseguiria controlar o défice público. Se esta lei estivesse em vigor, poderia ser acusada de estar a “desinformar”, de estar a ameaçar as políticas públicas. Enganei-me na previsão, como é agora claro, por uma razão fundamental: não me passou pela cabeça que PCP e Bloco de Esquerda iriam permitir que o Governo fizesse o que fez, ou seja, que lhes prometesse gastar e, durante o ano, impedisse a despesa de se realizar, através de cativações e autorizações prévias, indo até ao ponto de transformar empresas de capitais públicos em direcções-gerais. Menos ainda me passou pela cabeça que PCP e BE iriam assistir a isso durante pelo menos três anos sem nada dizerem, sendo cúmplices da degradação dos serviços públicos. Claro que na altura fui alvo de violentas criticas e algumas perseguições nas redes sociais. Se esta lei estivesse em vigor alguma “entidade” de selos de verdade poderia acusar-me de estar a dizer mentiras?
Um outro exemplo. Quando se soube no final de 2014 que o PS ia governar com o apoio do PCP e do BE, as taxas de juro a dez anos da dívida pública portuguesa subiram, com os investidores a venderem pelo receio desta solução. Este comportamento prolongou-se depois com as dificuldades que o Governo da Gerigonça teve em negociar o Orçamento do Estado. Mas a “narrativa” do Governo passa por atribuir a culpa da subida da taxa de juro só e apenas à passagem de dívida sénior que estava no Novo Banco para o BES-mau, afirmação que voltou a ser feita pelo agora governador do Banco de Portugal Mário Centeno na comissão parlamentar de inquérito ao Novo Banco e que, como se pode ver aqui, não passa no teste dos factos. Quem seria considerado fidedigno neste caso? O que diz o Governo? E o que fariam neste caso as tais entidades que vão dar selos?
No quadro desta inacreditável Carta de Direitos Humanos, todos quantos criticarem as escolhas de política económica correm o risco de serem apanhados na rede censória desta Lei, uma proposta do PS mas que mereceu os votos a favor do PSD, do CDS, do BE, do PAN e das deputadas independentes Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. Sem que nenhum dos outros partidos votasse conta.
Não, e não vale a pena pensar que a Lei não é para aplicar, como acontece a muitas das leis que se fazem no País. A Lei está feita e a qualquer momento pode ser aplicada, com toda a dose de abrangência e subjectividade que consagra. E torna-se ainda mais perigosa na actual conjuntura – ou aparece por causa da actual conjuntura – em que o País se está a radicalizar. A gritaria que se fez com o congresso do Movimento Europa e Liberdade (MEL), a tentativa de ilegalização do Chega, a agressividade que se identifica nas redes sociais à direita e à esquerda são algumas das faces visíveis de uma polarização que faz recordar os tempos do PREC – Processo Revolucionário Em Curso dos anos após o 25 de Abril de 1974.
A Varieties of Democracy Institute (V-Dem), com sede na Universidade de Gothenburg na Suécia, mostra como a polarização está a conquistar terreno em Portugal e em Espanha neste recente artigo com o título Political Polarization after Democratization on the Iberian Peninsula. Estamos ainda longe de finais da década de 70, mas identifica-se já grande dificuldade de diálogo entre grupos com convicções políticas diferentes. Como se diz nesse artigo, “a polarização precede em geral um processo de autocracia e pode estimular os cidadãos e os actores políticos a apoiarem actuações não democráticas”.
Miguel Poiares Maduro, num texto que escreveu há uma semana no Expresso, refere-se ao relatório deste ano da V-Demalertando para o facto de Portugal já não ser uma democracia liberal, estando agora no patamar abaixo de Democracia Eleitoral ao lado da Polónia, República Checa, Eslovénia e Eslováquia. Portugal deixou de ser uma Democracia Liberal de 2010 para 2020.
A dita “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital” só pode contribuir para degradar ainda mais a nossa democracia, expor ainda mais a sua fragilidade num tempo em que o Governo se dá ao luxo de classificar como anti-patriotas os que o criticam, em que começa a existir medo de criticar e em que todo o aparelho do Estado começa a ser dominado pelo Governo.
O facto de nenhum partido ter votado contra esta lei que abre a porta à censura, o facto de os dois maiores partidos do regime a terem apoiado e o facto de o Presidente da República, um constitucionalista, a ter promulgado sem qualquer dúvida são, em si, um sinal de que podemos já estar na fase em que os cidadãos e os actores políticos apoiam actuações não democráticas. O que torna o tempo que vivemos muito perigoso.
Damos a liberdade e a democracia como adquiridas, mas não são. E as ameaça podem chegar de onde menos se espera, podem chegar, sem que se apercebam, daqueles que mais batem no peito com juras à defesa da liberdade e da democracia.