Os fenómenos de centralização e descentralização do poder são recorrentes em política. Em Portugal, são quase tão velhos quanto o país. Nascido, este, num processo de afirmação de um chefe, em tempos de lutas por espaço territorial e de poderes locais, não admira que, apenas em condições muito propícias, se assistisse ao início da centralização do poder, no século XIII. Naturalmente, registaram-se tensões entre os senhores e os reis, com estes a buscar apoio no povo, representado, em cortes, desde meados desse mesmo século. Mas elas existiam e persistiam, até pelos novos rumos que a política portuguesa havia de tomar.

Fosse como fosse, a linha ideológica dominante, de afirmação do poder do rei, ganhava sustentação (até pelo pensamento jurídico dominante) de descoberta do direito romano e do seu triunfo nos estudos das universidades nascentes. Com ela, já em plena Idade Média, e com ênfase na Idade Moderna, observou-se o afastamento do rei em relação aos seus súbditos. E, embora o poder local fosse uma realidade, também ele era, cada vez mais, sujeito ao rei e aos seus funcionários. Estes interferiam, em crescendo, na justiça, se não através de juízes locais, por juízes de fora, com vastas competências nos concelhos. Criavam-se novos tribunais, com a especialização da justiça; dava-se, às câmaras concelhias, novas competências, como nomeações na nova organização militar (nomeação dos capitães e sargentos-mores), da saúde (guardas-mores da saúde); das finanças, como na criação de um novo imposto geral (a décima), cujos quantitativos eram de sua fixação. Apesar de o poder régio estar longe, fazia-se sentir pela proximidade. Na ampla margem de manobra dos concelhos, assistia-se à dicotomia entre poder e mando: aquele era a realidade teórica; este, a efectivação do poder e a eficácia da lei.

Durante o absolutismo, que se instalou definitivamente em Portugal no século XVII, o rei assumir-se-ia como senhor esclarecido. O regime, mais centralizador do que antes, colocava o poder absoluto – ou seja, independente de outro órgão – nas mãos do rei. O rei ditava as leis, podendo ou não ouvir os seus ministros que, na verdade, funcionavam mais como conselheiros do que outra coisa. Simultaneamente, mão na mão com o absolutismo, a ideia da origem divina do poder do Rei defendia que a autoridade do rei emanava directamente de Deus. Um exercício do poder centralista, esclarecido e despótico.

Naquilo que chamaríamos o “marketing político” do tempo, o absolutismo deveria ser visível a todos. Para tal, e como poder com origem divina, o rei distanciou-se dos seus súbditos, de todas as formas possíveis, mesmo no seu aparecimento público. O Rei governava à distância, tomava as suas decisões, não havia qualquer escrutínio devido à centralização do poder na sua pessoa – ele era a personificação do poder em si próprio. Mesmo na missa, o Rei não aparecia, ficava atrás da cortina, inacessível, em sinal de superioridade e distância.

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Passou o absolutismo; sobreveio o liberalismo. Descentralização e centralização oscilaram, ao longo do século XIX. O século XX assistiu às freguesias civis, quase destituídas de poderes, e no seu final, a uma fragmentação cada vez maior do mapa de concelhos. Têm os cidadãos mais poder? Não, têm mais camadas de poder em cima de si.

Chegados aos dias de hoje, como é que tudo isto se traduz? Muitos pensarão que a solução para a aproximação do poder aos cidadãos é a descentralização, seja tirando poder de Lisboa, seja por delegação de competências. Outros dirão que é necessário executar a regionalização, efectivamente criando uma camada de administração do território, que hoje não existe (embora possamos entender as CCDR como um seu embrião).

Ora, o que é ter o poder mais próximo dos cidadãos? Sim, pode passar por ter os centros de decisão mais perto dos cidadãos. A descentralização e a regionalização pretendem ambas, com diferenças, alcançar este objectivo. Mas será que sim? A regionalização pretende implementar patamares intermédios de administração do Estado. Na verdade, o poder, mesmo sendo regional, poderá continuar longe do cidadão. Já a descentralização dependerá do que for descentralizado e como. Uma descentralização no papel, sem orçamento, como foi a descentralização de competências na educação e saúde, para as câmaras municipais, não deixa de ser curta e para aparências. Por outro lado, quer a regionalização, quer a descentralização são respostas, num primeiro nível, a uma questão de administração do território e pouco mais.

Porém, do que tratamos aqui é de ter o poder mais próximo dos cidadãos. E isso faz-se para além da administração do território. Para um liberal, porque é do cidadão que emana todo o poder, o que há a fazer é devolver o poder ao cidadão. O cidadão exerce-o em eleições (emanando daí o poder legislativo e o poder executivo), mas também o deverá exercer na sua relação com o Estado, nomeadamente através da sua relação com a Administração Pública. Falamos da proximidade entre eleitos e eleitores, discutimos reformas da lei eleitoral. Mas será que falamos suficientemente da relação entre cidadãos e o poder, todos os poderes (central, local, legislativo, executivo e judicial)? Quão próximos – ou distantes – estão os cidadãos do poder?

Aquilo a que assistimos em Portugal é aos cidadãos estarem muito longe do poder – e referimo-nos aqui a todos os poderes do Estado de Direito. Se alguém tiver um processo na justiça, dificilmente verá concedido um pedido de audiência directamente com o juiz desse processo. Ser recebido por um Magistrado do Ministério Público também pode ser uma odisseia, em que têm de se justificar todos os passos. Exigir ser recebido por um Chefe de uma qualquer repartição de um serviço público é ser-se olhado de lado pelo funcionário, porque o Chefe não deve ser incomodado. E há as exposições e requerimentos a Directores que ficam sem resposta – e o cidadão no limbo. Estes organismos públicos têm páginas da internet sem qualquer contacto, excepto um formulário, ou mesmo uma morada. Quem são? Não têm rosto? Porquê esta distância?

É necessário navegar toda uma teia de funcionários, a quem o cidadão se vai queixando, e que dizem que não têm nada a ver com isso porque não é sua responsabilidade. E até pode ser a verdade. Porém, o que se passa, na grande maioria dos casos, é que os responsáveis, que exercem todos os dias o poder do Estado nas suas mais diversas vertentes – portanto, o mando – não querem ser incomodados pela plebe dos cidadãos. O rei continua atrás da cortina. E não há descentralização ou regionalização que consiga mudar este tipo de funcionamento. A devolução do poder ao cidadão tem é que ser feita através de uma profunda reforma dos Serviços Públicos, da Administração Pública e da Justiça, mais transparente, mais aberta, mais célere, por um lado e, por outro, com sistemas de avaliação meritocráticos implementados nas mais diversas áreas do Estado.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.