Confesso que, até a questão ser levantada pelo Presidente da República, nunca tinha pensado muito sobre o tema das reparações aos povos colonizados. Achava que não somos responsáveis pelos actos dos nossos antepassados. Logo, os europeus de hoje não são culpados pelos crimes cometidos pelos seus avós, nem os africanos de hoje são vítimas das injustiças sofridas pelos seus avós. Sucede que, depois do fatídico jantar em que Marcelo Rebelo de Sousa lançou a polémica, após aturada pesquisa, descobri que há precedentes históricos que contradizem a minha opinião. Nós, na Europa, temos uma tradição enraizada de exigir que pessoas de determinada etnia paguem por actos praticados pelos seus antepassados. Eduquei-me e agora sou a favor de se punir um povo pelo que os seus avôs fizeram.
É preciso um grande descaramento para nos negarmos a ressarcir os africanos, quando andamos há quase dois mil anos a cobrar aos judeus a morte de Cristo. Desde o dia em Jerusalém em que a multidão de judeus disse a Pilatos para libertar Barrabás e condenar Jesus ao suplício, os futuros cristãos ganharam um crédito que, com fria regularidade, têm vindo a cobrar através de pogroms de dimensão variada.
Portanto, da mesma forma como ainda hoje se castigam os judeus pela malfeitoria praticada há várias gerações, faz sentido que paguemos a dívida contraída pelos avoengos que há 600 anos se tornaram colonizadores, empreendendo nos negócios da exploração territorial e revenda de escravos africanos. Se um indivíduo de nariz grande e quipá podia, em 1847 na Rússia, ser obrigado a liquidar a prestação que outro indivíduo de nariz grande e quipá assumira por volta do ano 30 na Judeia, é justo que um português em 2024 possa ser chamado a indemnizar um africano contemporâneo por causa da dívida contraída por outro português de 1459 a outro africano da mesma época. Faz todo o sentido.
Porém, é importante perceber como é que Portugal pondera proceder ao processo de reparações. Muitas vezes, as boas intenções esbarram em obstáculos administrativos que impossibilitam o sucesso da iniciativa. E, dado o volume indemnizatório, o mais certo é que as compensações sejam processadas da mesma forma que as de um seguro. O que significa que está tudo lixado. Se o Estado se comportar como uma seguradora, vai acabar por não pagar nada a ninguém. Uma companhia de seguros, antes de gastar um cêntimo que seja, tenta excluir o maior número possível de beneficiários da cobertura. Neste caso específico de recompensar os descendentes das vítimas do tráfico transatlântico de escravos, a seguradora excluirá automaticamente qualquer africano das ex-colónias. Dirá que, em termos técnicos, um escravo é uma pessoa que foi capturada em África e transportada para o Brasil. Ou seja, um angolano, por exemplo, é descendente de africanos que ficaram em África. Tem antepassados que não foram escravizados. Aliás, o mais provável é que tenham sido antepassados que capturaram e venderam escravos a mercadores portugueses que os transportaram para o Brasil. Na melhor das hipóteses, não recebem nada; na pior das hipóteses, a seguradora ainda é capaz de obrigar os descendentes de africanos que ficaram em África a contribuírem para as indemnizações.
Depois de se livrar dessa, a seguradora reservará as reparações apenas a descendentes de escravos. Que são os que estão no Brasil. Com uma condicionante: para efeitos de indemnização, considerará somente os descendentes de escravos que comprovem que vivem pior hoje no Brasil do que viveriam em África, caso os seus antepassados não tivessem sido escravizados. A seguradora vai argumentar que o Neymar, se os antepassados dele não tivessem sido trazidos para o Brasil, não seria agora o futebolista multimilionário que é. E, depois de exectuar um complicado cálculo, ainda lhe vai sacar uma indemnização a ele.
Para ressarcir é necessário que tenha havido um dano. Se, em vez de dano, houver benefício, a seguradora vai-se recusar a pagar. Da mesma forma que, depois de uma tempestade, o seguro só indemniza se o telhado tiver sido arrancado. Não paga nada se, além do telhado não sofrer danos, depois da chuvada a casa ainda tenha ganhado dois andares.
São tramadas, estas seguradoras.