Montenegro não é oriental, mas é lento, tem o tempo do país rural, embora urbanizado.”  — Assim falava Marcelo Rebelo de Sousa em Abril deste ano a propósito do novo primeiro-ministro. Um mês e uma semana antes Montenegro vencera as legislativas de “forma tangencial”, “por um triz”. Ou, como então se lia no site da RTP, onde certamente se esperava por um milagre que reconduzisse o país à ordem celeste da esquerda: “Luís Montenegro declara vitória. Montenegro diz que a Aliança Democrática ganhou as eleições legislativas e que o Partido Socialista saiu derrotado.

Quando falava aos correspondentes estrangeiros Marcelo já se tinha confrontado com o controlo da informação que Montenegro estabelecera e que o privara de uma táctica em que é exímio: as fugas de informação. Montenegro conseguiu formar governo sem que os nomes saltassem para a praça pública. Meses depois, já em Setembro, e a propósito da escolha do novo PGR, tornou-se evidente que Montenegro conseguiu impor as suas regras a um presidente desgastado que se prodigalizava em declarações sobre o seu papel na escolha do sucessor de Lucília Gago. A 6 de Setembro: «Marcelo lembra que tem “sempre palavra final” na escolha de PGR e apressa Montenegro: “Não falta muito tempo”». A 23 de Setembro, face ao silêncio de Montenegro, aproveita a visita a um centro de saúde para afirmar: “Novo PGR. Marcelo assinala prazos para escolha de um nome (…) assinalando que se trata de um processo que envolve também a ministra da Justiça que terá de estar resolvido nas próximas semanas.” Qual ilusionista que repete o truque que tanta glória lhe deu e que agora parece não funcionar, a 27 de Setembro Marcelo saiu do palácio para ir comprar um bolo de aniversário e, claro, falar, falar e falar sobre o nome do PGR que Montenegro continuava a não partilhar consigo: “Tenho de ir ali comprar uma coisa que é um bolo de anos”, disse o chefe de Estado, justificando a sua saída à rua onde várias televisões o esperavam. O Presidente confirmou o encontro que terá entre o fim da manhã e o início da tarde com o primeiro-ministro (…) “É expectável que o primeiro-ministro apareça com nomes e depois veremos qual é o consenso”, afirmou Marcelo, explicando que, depois, se colocará “o problema da divulgação”, mas adiantando “se for um processo muito rápido é uma divulgação ainda este fim-de-semana”.

Montenegro deve ter demorado menos tempo a apresentar a Marcelo o nome de Amadeu Guerra para PGR  (apenas um nome, o que frustrou as expectativas que Marcelo tinha para si mesmo nesse processo de ver “qual é o consenso”) e a divulgá-lo do que Marcelo a cantar os parabéns e a fatiar o bolo!

O presidente da República foi um dos primeiros a perceber que Montenegro tinha uma maneira própria de impor as suas regras. Em Abril associou isso a um carácter rural. E, condescendente, avançava como quem revelava um falhanço antecipadamente escrito nas estrelas dos bastidores: “Ele é um grande orador, mas é um político à moda antiga. Vamos ver se conseguirá controlar o tempo, compatibilizá-lo com o governo, no meio da polarização.” Em Outubro, o rural impôs-se a Marcelo. Mas não só a ele. O próprio facto de estarmos a discutir o Orçamento nestes termos era muito improvável há uns meses. Primeiro não se sabia se o Governo passaria no parlamento. Depois podia cair nas europeias. Depois, e muito provavelmente, não conseguiria fazer aprovar o Orçamento. E é na discussão do Orçamento que estamos. Só que esta discussão não está a acontecer nos termos que muitos esperavam. Sobretudo estes não são os termos que Pedro Nuno Santos e André Ventura esperavam. Ventura ficou a contar imigrantes nas ruas e Pedro Nuno Santos acabou mais enredado no OE que o próprio Montenegro. No momento em que escrevo (sábado) será difícil, muito difícil mesmo, ao líder socialista justificar um voto contra o OE.  A seu modo, ambos, Pedro Nuno Santos e André Ventura, cometeram o mesmo erro que Marcelo: subestimaram Montenegro. E, não menos importante para o actual estado da correlação de poderes, sobrestimaram-se a si mesmos. Aquilo com que nem Marcelo, nem Pedro Nuno Santos nem André Ventura contavam era com a capacidade de Montenegro para não ficar refém deles.

Nunca subestimem um rural!  Esta é a grande lição dos quase sete meses que Montenegro leva em São Bento.  Sim, talvez Marcelo tenha até mais razão do que imagina. Os rurais  conhecem não só o tempo como o terreno que pisam. Na agricultura isso vale muito mas na política vale ainda mais. Chama-se táctica. E aqui chegamos ao meu engulho com Montenegro: estou farta de táctica.  Sim, depois de tacticamente ter feito por si e pelo seu torrão-partido, o rural está disposto a fazer algo pelo país?

PS. O 5 de Outubro tornou-se uma celebração oficiosa que, agora que se tornou reservada a convidados (poucos), caminha do patético para o penoso.

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