1 Que estranho tempo português é este? Desistiu-se? Parece. Estamos perante uma voluntária demissão de nós mesmos? Parece. O berço onde vimos a luz do dia passou a ser uma vulgar morada em vez de matriz que nos responsabiliza e raiz que nos obriga? Também parece e “parecer” já é imenso. O país habituara-nos á sua histórica oscilação entre a auto-depressão que o aconchegava e a glória que o “orgulhava” mesmo que hoje só no futebol e não já em expansões e Impérios. “Há duzentos anos que é assim”, lembra-me persistentemente um amigo. Eis porém que agora se passou para um ambiente “em modo de desistência”, numa imensa desconformidade com a realidade.
2 a) A Saúde, que o Estado diz garantir como direito,m as que há sete anos é ideológica antes do mais, assiste a demissões em cadeia, atende entre a desordem e o caos “fechando” serviços prioritários devido a planificação irresponsável, abrindo e reabrindo sem método mas com intermitência. Deixando “em espera” (eterna) os que “não”: não têm dinheiro, não têm protecção, não têm alternativa.
b) A escola pública há sete anos ideológica antes do mais, fecha semanas seguidas com alunos reféns de negociações intrigantes: quem negoceia com quem? Quem representa quem, que se passa no intricado novelo de negociadores governamentais, partidos, sindicatos, professores?
c) Após a continua indiferença governamental pelo sector da Habitação traduzida na incompetência de anos do maestro António Costa, chegou subitamente um “aqui d’el rei” sob a forma de um power point inconcebível. Vale tudo numa pressa atamancada que nunca substituirá um critério racional de intervenção. O assunto está aliás tão mal entregue que vão sobrar mais estragos que resultados e mais guerra do que paz.
d) Na Justiça — onde há processos que parecem ter selo de garantia de prescrição — os ricos pagam a advogados poderosos para que lhes adiem as chatices até ao limite da decência enquanto o comum dos mortais, incapaz de competir com jogo tão ardiloso, sofre anos a fio com uma burocracia que tudo seca em seu redor (um dia alguém deveria fazer contas para saber quanto o país pode ter empobrecido só á conta do que não se fez devido à sua implacável burocracia).
e) Na onerosa série televisiva “A TAP”, série nacional já em quarta temporada, podia apenas ser tudo mau – guião, interpretes, realização. Reduzi-la a isso ficaria porém a anos luz de um escândalo que nos humilha, nos ofende e nos rouba. Mas que não se confundam protagonistas: não se equivalem de todo na responsabilidade, na culpa, no aproveitamento, no comportamento. Custa de resto a crer que em quatro temporadas o que quer que fosse ocorrendo no guião da série não fosse do total conhecimento do dr. António Costa e feito com a sua autorização. Ou muito me engano ou não vai haver mãos para a litigância.
3 Portugueses com particulares “obrigações” – senadores, ex-governantes com assinatura no país, presidentes e ex-presidentes de confederações e associações, altos quadros, gente da economia, gente que pensa Portugal, gente que habitualmente intervinha – estão em modo de desistência? Como se tivesse erguido um acolchoado biombo entre a sua voluntária instalação na indiferença e a vontade de vestir a camisola do país. Indiferença adormecida. Conformam-se com Portugal como ele está, aparentemente não se perturbando por aí além que não deva estar. Dali não vem um som. A crítica ou a indignação audíveis face a um governo em decomposição chega-nos muito dos écrans, pouco da sociedade civil. A esperança de um melhor destino colectivo exigiria mais.
Enquanto a pátria recua, o inimaginável avança, galgando pontos diariamente. Nada como a eloquência do “vivido”: quem diria ontem que as nossas linhas férreas se poderiam alguma vez confundir com as da Índia profunda com carruagens de comboios indescritivelmente atulhadas de gente? Que a correcta e completa aplicação do PRR, última esmola com que podemos contar com razoável segurança, é afinal hoje mais incerta e sobressaltada do que nos garantiam ontem; que a gangrena da corrupção vai também ela galgando o corpo do país, ampliando a infecção dia a dia; que o SNS – repito, pela ininterrupto sofrimento que causa – consegue estar pior hoje que ontem (mas espantosamente talvez menos mal que amanhã): de que serviu a contratação de um duplo para Manuel Pizarro? Que tem feito o duplo? Se Roma e Pavia não se fizeram num dia, a responsabilidade política teria aconselhado a Fernando Araújo algum gesto ( nem que pequeno, nem que apenas vagamente estimulante). Para que não se considerasse hoje que afinal dois cavalheiros – Araújo e Pizarro – não conseguem fazer melhor do que um deles, Pizarro, fazia ontem sozinho para minorar um insuportável estado de coisas.
(Se Paulo Macedo fosse menos avesso a expor-se à media, valia a pena perguntar-lhe como se orientou nos pesadíssimos tempos da troika: alguém se lembra de algo de sequer semi-parecido – não parecido, só semi-parecido – com o que ocorre hoje neste domínio, o mais transversal, o mais urgente, aquele – regra sem excepção – que quando falha ou falta, penaliza automaticamente os fracos e frágeis?*
4 Dirão que são queixumes. Mais do mesmo. A cantilena do costume (há outra? ) Neste pequeno canto português á beira mar que não desiste de desistir, onde moram muitos velhos e de onde abalam muitos novos, Portugal não é o país vendido pelo governo e cantado pelo PS. Oxalá fosse ou venha ser. Ate lá, e face a pré -avisos de futuros sombrios, abala-se. Ou entristece-se.
5 Admito que o que acima escrevi seja considerado exagerado, quem sabe se violento, certamente injusto. Peço desculpa. Digamos que a impressão de instalação na desistência e o silêncio cansado que envolve o país é directamente proporcional à estranheza que me causam mas isso ainda seria o menos. O mais é o péssimo sinal que Portugal emite de si mesmo quando confrontado diariamente com o seu aparente alheamento.
Um filho perguntou: “que escreverá a mãe de pior daqui uns meses, para o ano?”
Deixo a resposta à consideração do leitor.
5 Duas notas.
1) Se a Igreja somos todos nós, lamento que alguns dos srs. Bispos tenham aparentemente esquecido a sua parte. O teor da última conferência de imprensa da Conferencia Episcopal, a sua forma e conteúdo permanecem para mim um mistério: não se viu uma estratégia, o anúncio de uma actuação concertada, o sinal de vontade e decisão. Não se viu quase nada do que se deveria ter visto. Observou-se melhor o descaminho que uma proposta de caminho. Ninguém, a começar obviamente nas vítimas que (indizivelmente) sofreram e sofrem com este flagelo e a acabar na plateia do pais, compreendeu nem mereceu o resultado da reflexão que nos foi apresentada e que se suporia que tivesse sido outro. Como se explica que entre o dia 13 de Fevereiro e o dia 3 de Março não se tivesse cuidado de que tudo, daí em diante, ficasse decisivamente mais claro em vez de mais turvo, mais determinado em vez de mais indefinido? Ou o Espírito Santo sopra com mais fôlego e fulgor ou não sei.
Resta-me ainda lamentar que críticas pessoais – infundadas e persecutórias mas logo automaticamente mediatizadas – feitas a vultos da Igreja, por vultos dentro da Igreja e fora dela, substituam a consideração e o respeito que esses vultos justamente nos merecem.
2) No último sábado um jantar reuniu no Porto 100 ex-membros do Chega para assinalar a sua saída do partido e o ingresso-regresso ao CDS. Esta invulgar operação não suscitou curiosidade, a media pouco ou nenhum relevo deu, uns vagos rodapés nos écrans. E no entanto o movimento merece atenção e o caso, politicamente interessante, suscita perguntas (e respostas).
* Uma cosia é certíssima, já de resto a observámos bem no longo padecimento da pandemia: O SNS está de pé graças a dedicação e a generosidade dos seus recursos humanos, provadamente capazes de sem limite, dar o seu melhor de si mesmos.