No último artigo que escrevi nesta coluna (“No dia em que Trump perdeu o pio”), apresentei a minha visão sobre os problemas causados ao mundo político pela sua migração em massa para plataformas digitais, pensadas e desenhadas para distintas cosmovisões. A meu ver, a maioria das plataformas digitais está muito mais focada na maximização da experiência para o utilizador, e na sua monetização, do que propriamente com os problemas da polis. Para tal, desenvolvem sistemas complexos, de base algorítmica, que fomentam o mimetismo, a criação de grupos de afinidade, o espírito de comunidade (com regras e culturas próprias), que ajudam a criar o grau de conforto necessários para que a experiência digital seja rentável. Na aparência, a forma como as plataformas tecnológicas foram desenhadas, em especial, a capacidade que têm de intermediar em larga escala, atraindo a atenção dos usuários, e segmentando as mensagens, a um custo marginal baixíssimo, tornaram-nas altamente apetecíveis para os agentes políticos, que migraram em massa para as chamadas redes sociais, onde passaram a desenvolver grande parte da sua atividade política. Não obstante, o mundo político tem-se sentido refém de um mundo digital onde, fruto das suas regras e cultura, e do seu próprio ADN, se convive mal com a diferença, de um mundo digital que foi desenhado e pensado para maximizar a satisfação e o ego, criar grupos de afinidade que desejavelmente não convivem entre si, que não existe nem foi pensado para promover um debate que se reconcilia na confrontação, e aceita bem as diferenças. Como referi, as plataformas tecnológicas não têm, no seu modelo de negócio, particular interesse em validar conteúdos, pois é na subjetividade – no empoderamento (“empowerment”) dos usuários –, e não na objetividade – ou rigor das fontes – que constrói o seu valor. O resultado é visivelmente desastroso: o mundo político invadiu as plataformas digitais, assentou os seus arraiais nas suas tecnologias, estando agora surpreendido e descontente com as consequências que derivam de um output que não verifica fontes, que valoriza a subjetividade, que gere mal os conflitos, que cria grupos de afinidade e tribos alienadas da realidade, movidas apenas por questões de ego, onde não se consegue reconciliar diferenças.

O debate aumentou de importância, recentemente, com os ataques ao Capitólio e o silenciamento, quer de Trump e dos seus seguidores, quer da rede social Parler, que viu o seu negócio suspenso por parte dos seus parceiros e fornecedores (Google e Apple), que excluíram o aplicativo das suas online stores, quer da Amazon, que suspendeu os seus serviços de alojamento (“hosting”) de dados, algo que tem sido interpretado, por alguns, como um brutal ataque à liberdade de expressão.

Se o mundo político já havia sentido o fel da utilização indevida das plataformas tecnológicas, nas duas últimas semanas foi o próprio sistema financeiro tradicional que viu as suas estruturas abaladas pela organização, a partir da rede social Reddit, de um ataque especulativo que explorou a excessiva exposição de hedge funds às ações da empresa GameStop (acesso apenas via VPN), e o posicionamento do aplicativo Robinhood, um broker que atua online, e que tem como principal característica não cobrar aos seus clientes nenhum preço por transação. Em traços simples, a partir de um fórum especializado na rede social Reddit (o wallstreetbets), foi veiculada uma “recomendação de investimento”, que valorizava as ações da empresa GameStop, incentivando compras massivas e uma subida exponencial do preço dos títulos, em sentido inverso ao que seria a tendência de mercado, que apontava para uma descida do preço das mesmas. A GameStop é uma empresa de retalho que já estava em dificuldades antes da pandemia e que viu a sua situação bastante agravada com a Covid-19. Partindo daquilo que é uma evidência de mercado – a desvalorização (real e potencial) dos títulos da Gamestop –, vários hedge funds optaram por assumir posições curtas (“short”), que representavam, em alguns casos, uma apreciação das ações, próxima de um valor zero. A subida inusitada do preço dos títulos da GameStop levou a que vários hedge funds acorressem em massa ao mercado para adquirir ações, com o objetivo de minimizar perdas, financiando desta forma o ataque especulativo feito a partir de pequenas ordens suportadas maioritariamente por investidores inscritos no aplicativo Robinhood, que na ausência de taxas por transação, não corriam grandes riscos, que não a perda do capital envolvido (bastante baixo). O volume de transações e de perdas dos hedge funds, bem como os danos causados pela suspensão de ordens por parte do aplicativo Robinhood, atingiu tal dimensão, que não faltaram exigências de “mais regulação”, da necessidade de reformular o papel das “recomendações de investimento”, dos brokers independentes, e do próprio sistema financeiro, em geral, exigências que recorrentemente nos visitam sempre que algo corre mal a alguns, em benefício de outros.

A iliteracia digital e a má gestão do risco

Durante séculos, e desde os gregos, que fomos educados para resistir ao canto das sereias, uma sonoridade encantadora que conduz os homens até à ruína. Desde os primórdios que para resistir ao (em)canto da sereia, muitos “marinheiros” usam estratégias várias, desde a colocação (metafórica) de cera nos ouvidos, até o uso de correntes para se amarrarem aos mastros, convencidos que, assim, poderão contornar a ameaça. Mais recentemente, Kafka recordou-nos o que Ulisses ignorou: mais perigoso que o canto das sereias, é o seu silêncio. Convencido que não as ouvia, porque a cera e as amarras o protegiam, Ulisses aproximou-se de tal forma das sereias que estas, em bom rigor, surpreendidas, optaram simplesmente por não cantar. Ulisses salvou-se, convencido ter resistido ao seu canto, aniquilando-as, quando em bom rigor, as próprias apenas desistiram de o seduzir.

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O mesmo acontece com as pulsões regulatórias. Na aparência, tendemos a acreditar que recorrendo a amarras e cera, é possível fazer uma navegação mais segura, resistindo ao encanto das sereias. Uma análise mais fina, porém, deveria levar-nos a questionar se, na essência, os problemas recentes resultam, mesmo, da ausência de enquadramento legal, ou, pelo contrário, é nos agentes que reside o curso da ação.

No plano político, exigir regulação de conteúdos e validação de fontes às próprias plataformas, por via legal, quando estas foram criadas para valorizar a subjetividade, e não a objetividade, distorcendo a natureza de negócios que são privados é, no mínimo, questionável e, na prática, inviável. Os negócios digitais até poderão aceitar, na aparência, acomodar algumas exigências legais, para não entrarem em rota de colisão com os poderes políticos, enquanto isso lhes permitir manter os seus negócios, altamente rentáveis. Este silenciamento aparente das sereias, dificilmente conduzirá a uma reconstrução do ADN das plataformas que, na sua raiz, não foram pensadas para serem locais para fomentar o contraditório, acolher a discussão política, ou funcionar como órgãos de informação. No mesmo sentido, acreditar que é possível travar, num mundo digital, a circulação de dados, definindo no plano regulatório o que é “informação” e/ou “desinformação”, equivale ao mesmo que admitir que é possível agarrar o ar.

A raiz dos danos causados, quer no caso Parler, quer no caso GameStop e, em termos mais globais, no declínio do debate político, radica muito mais na dificuldade que temos tido em compreender o mundo digital, e os seus riscos, do que propriamente na ausência de “leis” ou “comandos” que tutelem a nova realidade emergente. O que determinou, ultima ratio, as perdas nos hedge funds, foi a exposição excessiva a um título com pouca liquidez, facilmente capturável por um ataque especulativo, decidida por investidores institucionais altamente regulamentados, e a inteligência de quem soube explorar, de sobremaneira, esta excessiva exposição, e as “borlas” do aplicativo Robinhood. O que “tramou” a Robinhood no caso GameStop foi não ter antecipado o risco de ter de acomodar um volume de ordens, superior à capacidade que os seus próprios parceiros teriam, de as colocar a execução, em bolsa de valores. Já no caso da Parler, e sem prejuízo das razões válidas que a empresa possa ter, em matéria de leis antitrust e de concorrência (a meu ver, bastante atendíveis), é já hoje possível concluir que a sua gestão de risco era claramente deficiente, não tendo um adequado plano de continuidade de negócio que replicasse o alojamento, em caso de interrupção do serviço por parte do fornecedor Amazon.

O papel da autorregulação publicamente regulada

Nos últimos anos, temos aderido de forma massiva ao digital, seduzidos pelas suas vantagens, mas nem sempre conscientes dos seus riscos. Viver num mundo digital exige novas literacias, que permitam que sejamos capazes de medir os riscos e as consequências das nossas decisões nos distintos contextos em que atuamos. Acreditar que o que falta são sobretudo soluções regulamentares e legais – sem prejuízo que a lei e a regulação têm sempre um papel na conformação das sociedades e, também, nestes casos –, é um mau começo para resolver, efetivamente, os problemas que enfrentamos.

Assim, e no plano político, a questão primordial que se nos coloca é saber como reabilitamos o debate, num século XXI que é irreversivelmente digital, migrando-o das atuais plataformas para outros locais onde seja possível, de uma forma orgânica e natural, promover o contraditório e a polémica, mas num ambiente plural e sem os enviesamentos próprios das redes sociais, fortemente centradas no “Eu” e na exploração do ego. É, igualmente, fundamental reabilitar o papel da informação e das mediações, como pressuposto fundamental e ponto de partida, para o debate. A insistência em manter o mundo político nas atuais redes sociais, que exacerbam a subjetividade, terá como consequência que os “políticos vencedores” acabarão por ser sempre os que melhor adaptam o seu discurso à criação de bolhas, de grupos de afinidade, alienações da realidade, e que melhor alimentam o ego dos eleitores, e dificilmente os que apelam à geração de consensos, dos equilíbrios próprios de sociedades plurais, onde o sistema político existe para reconciliar as diferenças.

No mesmo nível, cidadãos e empresas têm de saber “ler” a realidade e os riscos que enfrentam no mundo digital, em vez de se acomodarem apenas às suas vantagens (efetivas ou meramente aparentes), reforçando as suas literacias e as suas estruturas, pois não faltarão, no futuro, cursos de ação preparados por quem quer explorar as vantagens e os benefícios da impreparação alheia.