No dia 7 de Janeiro, logo após a invasão do Capitólio, o fundador e CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou a suspensão das contas de Donald Trump no Facebook e Instagram, no que foi seguido por outras plataformas e redes sociais como o Twitter, Snapchat, entre outras. Pelo caminho, uma pequena, emergente e muito interessante rede social, a Parler, muito utilizada por utilizadores engajados com movimentos conservadores (entre os quais, usuários bloqueados noutras redes sociais), viu a sua infraestrutura silenciada face à proibição de distribuição da sua app, na Google Store e na Apple Store, e pelo desligamento das ligações aos servidores que teria contratados com a Amazon Web Services. Não faltaram, desde então, diversas manifestações, de apreço ou repulsa pela decisão, com argumentos que oscilam entre a aceitação que Trump e alguns dos seus indefetíveis terão ido longe demais e as que apelam à defesa da liberdade de expressão e à exigência aos Estados de regulação das plataformas, para proteção dos usuários e do pluralismo face ao que serão supostas aspirações totalitárias das novas bêtes noires, os tetramilionários donos das empresas de Big Tech.

O silenciamento de Trump e dos seus seguidores, na sequência dos incidentes do Capitólio, é o incidente mais visível de uma difícil relação entre as grandes plataformas tecnológicas e o poder político, mas não é o único (basta recordar os contornos do caso Cambridge Analytica), tendo tido, em qualquer caso, a virtude de colocar os temas do online speech regulation e da platform governance, pelos quais me interesso profissionalmente há alguns anos, na agenda mediática. Hesitei escrever estas linhas, porque tenho consciência que se o discurso mainstream atraiu a atenção para estes temas, eles carregam consigo, por estes dias, os enviesamentos (“bias”) próprios dos casos concretos e uma certa superficialidade na análise que, na medida do exequível, irei tentar combater, distanciando-me o mais possível daquilo que é a espuma dos dias e os aspetos casuísticos das polémicas em curso, colocando sob tensão as várias dimensões de um problema complexo, que apresenta desafios inovadores, e que portanto nos exigem soluções que não encontram resposta nos mecanismos jurídicos clássicos.

As plataformas tecnológicas são negócios privados

Plataformas tecnológicas como o Facebook, Twitter, Instagram, Tik Tok, Snapchat, WhatsApp, Tinder ou Linkedin, entre outras, são negócios privados que visam o lucro e a criação de valor para os seus acionistas, trabalhadores, clientes e usuários, podendo definir as regras de subscrição dos seus serviços dentro daquilo que é a legislação em vigor. As plataformas tecnológicas não são órgãos de comunicação social, nem têm como função informar o público. São plataformas de intermediação, que facilitam diversas experiências aos seus usuários, com objetivos claros: recolher dados que, posteriormente, possam ser monetizados, seja pela difusão de marketing dirigido e com elevada segmentação, seja pela fidelização a produtos e serviços oferecidos em linha. Os temas e os interesses abordados vão muito além daquilo que pensamos encontrar na comunicação social tradicional e nem a agenda é definida por uma redação, nem os conteúdos são produzidos pelas plataformas, mas pelos próprios usuários. São, por isso, descentralizadas por definição e abertas, no sentido em que são os próprios usuários quem define o que é objeto de tratamento – as “tendências” –, que seguem as suas preferências e atenção. Por exemplo, o Twitter, que é a plataforma atualmente mais associada ao engajamento político, tem nas categorias bem apolíticas de bem-estar, espiritualidade, criação cultural (música, vídeo e escrita), identidade e género, nas matérias ligadas ao planeta e à tecnologia, as tendências mais marcadas no ano de 2020, sendo a diversidade e a riqueza de dados essenciais para a fonte produtora e valorização do negócio.

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As plataformas tecnológicas dependem da sua reputação

Para serem bem-sucedidas, as plataformas tecnológicas dependem exclusivamente da sua reputação e da necessidade permanente de propiciarem uma boa experiência aos seus usuários. Aquilo, porém, que é uma boa experiência para um usuário, poderá não o ser para os restantes, algo que tem conduzido a que todas as plataformas criem as suas identidades próprias e graus de segmentação significativos, para garantir que se criam grupos de afinidade e proximidade que maximizem a satisfação de cada utilizador. As plataformas tecnológicas vivem do mimetismo e assumem, aliás, deliberadamente, a designação de redes sociais, para fomentar o espírito de comunidade, com regras e uma cultura próprias, que ajudam a criar o grau de conforto necessários para que a experiência digital seja rentável. A forma como as diversas plataformas organizam os grupos de afinidade e as diversas tribos ou comunidades resulta de um processo repartido entre as decisões do próprio usuário e um conjunto de algoritmos que, por cruzamento de dados acumulados e alinhados de várias fontes, vão aprimorando o conhecimento sobre as suas preferências, para o encaminhar para aquilo que, no newspeak tecnológico se considera ser, uma melhor experiência de utilização. Toda esta realidade digital merece ser enquadrada e revisitada à luz de alguns dos conceitos clássicos da sociopsicologia e da teoria das representações sociais. Assim, todos os usuários que, com as suas condutas, desalinhem daquilo que são os valores desenhados por cada uma das comunidades, ou não sirvam as finalidades das plataformas em si, tendem a ser afastados, seja por um processo subtil de incorporação da recusa na aprendizagem algorítmica e análise do sentimento, seja por ação dos próprios usuários, a quem convenientemente é atribuída a função de definir com quem interage, num processo em que, progressivamente, se começa por criar tecnicamente um quase impercetível distanciamento e que pode terminar no acionamento mais tangível dos diversos mecanismos de expulsão.

As plataformas tecnológicas não existem para garantir a liberdade de expressão

Ora, correndo o risco de ser polémico, só por incompreensão da forma como funcionam as plataformas digitais, os seus algoritmos e os comportamentos em rede, se pode pensar que o que está em causa, hoje, na sua regulação, são aspetos relacionados com a liberdade de expressão, embora aceite que, ultima ratio, casualmente e em situações limite, os mecanismos de exclusão possam aproximar-se daquilo que fomos habituados a qualificar como “censura”. As plataformas tecnológicas têm usuários, cuja experiência de utilização passa por trabalhar os mecanismos do ego que criam satisfação, e não cidadãos, a quem se pede que cumpram as exigências próprias da cidadania. Pedir a uma plataforma privada, que vive do mimetismo e é financiada pela aceitação que tem junto dos seus usuários, que os obrigue a conviver com aquilo que os desconforta, ou que põe em causa a sua reputação, é, não só altamente questionável, como face ao ADN deste tipo de negócios e a forma como foram desenhados, pouco viável.

Algumas plataformas tecnológicas foram capturadas para a arena política

É inegável, porém, que a forma como as plataformas tecnológicas foram desenhadas, a capacidade que têm de intermediar em larga escala, atraindo a atenção dos usuários e segmentando as mensagens a um custo marginal baixíssimo, as tornaram altamente – mas também, enganadoramente – apetecíveis para os agentes políticos. Já os donos das empresas de Big Tech viram nesta migração da arena política para as suas plataformas uma simpática forma de ganharem poder. O canto de sereia e a equação fatal daí resultante, traduziu-se num jogo de (aparente) soma positiva para as empresas de Big Tech, e numa significativa fragilização dos agentes políticos. O mundo político viu-se, de repente, refém de um mundo digital onde, fruto das suas regras e cultura, e do seu próprio ADN, se convive mal com a diferença e onde tudo está feito para maximizar a satisfação e o ego, criar grupos de afinidade que desejavelmente não convivem entre si, um mundo digital que não existe nem foi pensado para promover um debate que se reconcilia na confrontação e aceita bem as diferenças. Acresce que as plataformas tecnológicas não têm, no seu modelo de negócio, particular interesse em validar conteúdos, pois é na subjetividade – no empoderamento (“empowerment”) dos usuários –, e não na objetividade – ou rigor das fontes – que constrói o seu valor. Ora, o resultado não podia ter sido mais desastroso: o mundo político invadiu as plataformas digitais, assentou os seus arraiais nas suas tecnologias e está agora surpreendido e descontente com as consequências que derivam de um output que não verifica fontes, que valoriza a subjetividade, que gere mal os conflitos, que cria grupos de afinidade e tribos alienadas da realidade, movidas apenas por questões de ego, onde não se consegue reconciliar diferenças.

O que parecia um jogo de soma positiva para os donos das empresas de Big Tech tornou-se, também para estes, num grave problema reputacional. Redes como o Twitter ou o Facebook, ou de forma mais vincada, o Instagram, não foram pensadas para alojar hordas de “deploráveis” irados contra toda uma série de micro-causas que, sendo do interesse da sua tribo, com personagens como Trump – que se revelou um verdadeiro Saruman, capaz de destruir, com os seus orcs, as chinese walls construídas subtilmente por via algorítmica – passaram a condicionar de forma significativa a experiência dos usuários. Na verdade, os sistemas de diques ou chinese walls criados para garantir que os grupos de afinidade vivem num agradável conforto, próprios de uma distopia, rebentaram com Trump, pondo em causa a suave harmonia da terra dos hobbits que desejavelmente favorece os negócios.

O papel da lei, do platform governance e da online speech regulation

É neste contexto que importa discutir como, no futuro, podemos melhorar os mecanismos de conformação dos negócios digitais com a lei, de forma a equilibrar os distintos interesses emergentes em jogo. A lei (e bem assim, o platform governance e a online speech regulation), é necessária para acomodar toda uma série de problemas emergentes, que extravasam, e muito, o problema da invasão do digital pelo mundo político. Às questões emergentes na regulação do digital, e o caso Parler, dedicarei um outro texto nas próximas semanas. Importa, em qualquer caso, concluir já aqui, que é importante que a ignorância e incompreensão sobre o fenómeno do digital não conduzam a soluções legislativas ineficazes. Sabemos bem como os poderes estatais tendem a acreditar que, por lei e com regulação, é possível pôr um cão a miar, algo que será de evitar nos pacotes normativos que estão a ser pensados, tanto nos EUA como na Europa. Importa em qualquer caso ter presente, que não será a lei a conseguir corrigir algo que está viciado à nascença: as democracias liberais, o pluralismo e a tolerância não serão salvaguardados se não formos capazes de reabilitar o debate político para fora das atuais redes sociais, que foram pensadas para nos ensinar as virtudes do açaí, viajar sem sair de casa, fantasiar com a Bela Adormecida ou os sete anões, ver o brilho das estrelas, salvar focas bebé e monetizar a nossa autoestima e o nosso ego, mas não para discutir as decisões relevantes para o nosso futuro coletivo.