Entre novas emergências e reviravoltas eleitorais, não nos despedimos somente da normalidade, do magnata de Brooklyn e das demais reportadas ocorrências. Deu-se, além de tudo isso, um momento solene, familiar mas público, cuja narração merece escrita e cuja redação aqui fica.

Somos, para parafrasear o poeta, cinco à mesa. Três sozinhos e um acompanhado pelo outro. É uma reunião mensal que nunca calha à mesma semana. Comemos e sentamo-nos como se nos tivéssemos visto no dia anterior, apesar de não termos. Somos cinco à mesa porque uns partiram e outros, agora, deixaram de poder estar. Somos cinco à mesa, não por o termos escolhido, mas porque nos aconteceu sermos cinco e continuarmos a estar cinco, este ano de cadeiras mais afastadas e com cada um a levar o seu prato, à vez, de volta à cozinha. Somos cinco à mesa, com uma das cabeceiras vazias e menos iluminada pelo candeeiro de pé alto, de presença inocentemente substituída pelo cesto de fruta e pelo jarro de água de que ninguém bebe.

Os cinco, depois da sopa e da conversa, em turnos diferentes de ingestão, chegaram desta vez ao café numa harmonia despropositada. Fez-se um silêncio, como que reconhecendo a invulgaridade do minuto em que haviam coincidido além do jantar. “Viram que o Keith Jarrett já não pode tocar piano?”. E claro que viram. Saiu no New York Times a notícia de que o pianista norte-americano sofreu dois enfartes, estando paralisado do lado esquerdo do corpo, mão incluída. Aquele que o Guardian considerou em 2014 o maior músico vivo no planeta está recluso no seu próprio corpo, privado de um hábito e de um talento que lhe esculpiram a vida.

O obituário de um génio deve ser feito aquando da sua partida, mas é o próprio Jarrett que diz já não se sentir “um pianista”; como se o artista desaparecesse, a obra permanecesse e a existência jazesse presa num limbo, sem saber bem que condolências receber de si mesma. O leitor deve conhecê-lo pelo seu concerto em Colónia, em 1975, ainda hoje o álbum de piano a solo mais vendido na história da música – tocado inteiramente em improvisação e de intensa fúria contra o instrumento, que era de modelo menor do que o encomendado.

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De Colónia, ouvem-se os pontapés na madeira do piano, a marcar o tempo, e os grunhidos de um homem que está ali mas não só ali. Os meus avôs escutavam-no em casa, como os meus pais escutavam The Melody At Night With You, uma obra-prima de tributo à sua mulher, que nunca faltou a um espetáculo seu até se separarem. Não estou certo do que os meus filhos vão preferir dele, mas a obra é vasta. Vai de Miles a Mozart, da música popular americana ao seu mítico trio com Gary Peacock e Jack DeJohnette.

Quando Peacock faleceu, no início deste setembro, aos 85 anos, lembro-me de nos telefonarmos todos uns aos outros, como se acabássemos de perder um ente querido e não um longínquo contrabaixista. “Morreu o Gary Peacock, sabias? Que tristeza”, e a praia lá ao fundo.

Agora que se sabe que Jarrett não tornará a criar nem tão-pouco a atuar, sobram os discos, um deles editado há dias, com uma atuação de 2018 em Bucareste. Mas naquela mesa, com uma coluna sem fios ao centro, a igual distância dos cinco, lá nos despedimos dele, que sempre cá esteve e nos ligou, como se a partir de agora nos tivessem roubado de fuso horário ou enviado para um país onde não se conseguisse ler a sinalética. Ficámos ali, estranhos na nossa familiaridade, num silêncio breve apenas quebrado pela música do pianista, esperando que o presuma na solidão a que o acaso o deixou, sabendo que não sendo isso suficiente para o devolver a si mesmo, que, pelo menos, fique connosco depois de ir embora.