Não estou certo de que a opinião publicada em Portugal se tenha apercebido da gravidade do que se passou esta semana no capitólio dos Estados Unidos da América, em Washington D.C., como não estou nada convencido de que os políticos portugueses tenham retirado grandes ilações sobre o sucedido.

Vamos por partes.

Desde que perdeu a sua reeleição, que Donald Trump se dedicou a questionar a validade dos resultados, criando uma realidade alternativa em torno do voto popular e do colégio eleitoral. Empenhou-se, em telefonemas já tornados públicos, numa escabrosa tentativa de contornar a vontade dos norte-americanos, ao mesmo tempo que reclamava uma “fraude” que nunca existiu. Não esteve, contudo, sozinho. Mais de metade dos congressistas republicanos apoiaram a sua iniciativa, recusando reconhecer Joe Biden como presidente-eleito dos Estados Unidos. E nenhum deles, durante os quatro anos da presidência Trump, se levantou para colocar em causa as variadas enormidades proferidas, as múltiplas vénias a tiranetes estrangeiros e o evidente aproveitamento do cargo para benefício da sua família e das suas empresas.

Foi preciso o partido perder, mais uma vez, o congresso; foi preciso o partido perder, por larga maioria, a presidência; foi preciso o partido perder, presumivelmente, o senado; e foi preciso uma multidão de manifestantes invadirem o capitólio e morrerem cinco pessoas para o Partido Republicano acordar e rejeitar o trumpismo.

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Kelly Loeffler, que 24 horas antes havia manifestado o seu apoio à continuação do ainda presidente, acabou por admitir que não podia “em boa consciência negar a certificação do voto dos eleitores”. James Lankford também recuaria, assumindo que o partido, depois do incidente, “certificaria Joe Biden como presidente dos Estados Unidos”. E Richard Burr, também senador e também republicano, afirmaria mesmo que “o presidente carrega responsabilidade pelos eventos de hoje ao ter promovido teorias da conspiração infundadas”. Vários membros da administração demitiram-se e vários antigos membros do gabinete de Donald Trump defenderam a sua remoção imediata do cargo.

Durante a semana que antecedeu o ataque ao capitólio, no entanto, enquanto Trump atiçava os seus apoiantes no Twitter e em discursos, nenhum dos senhores ousou abrir a boca. Era mais um dia, mais uma alarvidade, mais uma coisa que não era para levar a sério e que acabaria por se esfumar no tempo. Cinco mortos mais tarde, incluindo um polícia espancado pela multidão com um extintor, o silêncio terminou ‒ mas só depois da tragédia. Entre os manifestantes já ouvidos pela justiça, encontram-se veteranos de guerra, proprietários de armas automáticas e um que conseguiu a proeza de entrar no capitólio com onze cocktails molotov. As imagens de homens camuflados empunhando algemas descartáveis mostram como muito pior poderia ter acontecido e como a América, independentemente do seu novo presidente, continuará dividida, radicalizada e furiosa.

As lições para o mundo que esta história deixa? Incontáveis. E nós, a um oceano de distância e com vários tweets de proximidade, talvez devêssemos refletir sobre aquilo que deixamos passar em branco por parte das nossas lideranças. Sejam acusações de traição internacional, como o primeiro-ministro lançou esta semana ao PSD, seja um profundo desprezo pela lei, como aquele que o líder da oposição exibiu ontem, resumindo a função dos juristas a “complicar” as suas reuniões com o governo, as palavras em política, como o sr. Trump provou esta semana, nunca são só palavras. E as suas consequências tendem a escapar às intenções dos seus autores.