A ligação entre a literatura e os telegramas diplomáticos é lendária, ainda que incomum. Os textos de Isaiah Berlin ao serviço do Foreign Office tinham uma qualidade tal que Churchill fazia questão de recebê-los diretamente em Downing Street. John le Carré, de forma mais oficiosa, escreveu as suas primeiras histórias sobre George Smiley enquanto cônsul. William J. Burns, o homem que vai dirigir a CIA da nova presidência americana, é dono de igual dom.

Em 2006, como embaixador dos EUA em Moscovo, assinou um telegrama que se tornaria célebre ‒ particularmente após ser exposto na plataforma Wikileaks. Burns, que trabalhou no Departamento de Estado mais de trinta anos, de Ronald Reagan a Barack Obama, presenciou um casamento no Daguestão, a maior região autónoma do norte do Cáucaso, entre o filho de um deputado da Federação Russa e a respetiva noiva.

“Os seus negócios ‒ e uma relação próxima com empresas americanas ‒ proporcionaram-lhe o suficiente para ter casas em Makhachkala, Kaspiysk, Moscovo, Paris e San Diego, assim como uma coleção de carros de luxo que inclui o Rolls Royce em que Dalgat [o filho] foi buscar Aida [a noiva] à receção dos pais”, narra Burns, ao pormenor, revelando que ele próprio já usufruíra da mesma boleia, “mas com a dificuldade de uma Kalashnikov ocupar grande parte do espaço para os pés”.

Gadzhi, o oligarca, já sobrevivera a variadas tentativas de assassinato, “assim como a maioria dos líderes do Daguestão”, e viria de facto a morrer, vítima de acidente automóvel, sete anos depois, em 2013.

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No relato do casamento, que durou três dias, Burns descreve uma mansão à beira do mar Cáspio em que o chão do hall de entrada correspondia a um gigantesco aquário de peixes exóticos. “O recinto altamente armado acolhe também uma segunda casa, um court de ténis e dois cais de onde se largavam jet skis”. Políticos, poetas, homens de negócios e realizadores de cinema, um treinador de futebol, um rabino, um lutador olímpico “de aparência permanentemente ébria” e coronéis do FSB compunham o milhar de convidados.

A conversa entre a comitiva americana e um líder local deu azo a esclarecimentos sobre raptos e fanatismo religioso. O presidente do Daguestão telefonou para congratular a boda. O líder checheno apareceu, com um revólver de ouro pendurado nas calças, mas não pernoitou no local ‒ “Ramzan nunca passa a noite em lado nenhum”, ao que consta.

Pelo meio, comida e bebida em barda. “Noite e dia, os cozinheiros pareciam ter ovelhas e vacas inteiras a cozer em caldeirões. Milhares de garrafas de vodca haviam voado dos Urais e também muito entretenimento. O artista principal, um cantor de origem síria chamado Avraam Russo, não conseguiu aparecer por ter sido alvejado dias antes”, reza o memorando. Atiradores-furtivos patrulhavam o telhado. Crianças mascaradas com armaduras medievais brincavam junto às carpetes vermelhas. Dançarinas seminuas angariavam notas de cem dólares como moeda predileta.

Pelas contas de Burns, o anfitrião terá brindado cerca de 120 vezes ‒ “algo que teria matado qualquer um”, não fosse o empregado servi-lo ocasionalmente de uma garrafa temperada com água. O pedido para os convidados não dispararem as pistolas que traziam consigo foi honrado, “até durante o magnífico fogo-de-artifício”.

A conclusão sobre a cultura no Cáucaso, “em que a palavra do pai é lei”, foi contraposta pelo embaixador com uma citação de Hayek: se geres a família como um Estado, destróis a família; se governas o Estado como uma família, destróis o Estado.

“Laços de sangue e amizade corroem a lei”, rematou, à data, Burns, numa tirada que provocaria calafrios à maioria do establishment norte-americano.

Volvidos 15 anos, Bill Burns será o primeiro diplomata de carreira a chegar a diretor da Central Intelligence Agency e dificilmente repetiremos o prazer de ler os seus telegramas. Nas suas memórias (The Back Channel), publicadas em 2019, louva a distinta modéstia de George H. W. Bush e a destreza de James A. Baker como exemplos seguidos por Obama na sua política externa. “O mundo que ele herdou, todavia, era bem menos propício a isso. Depois das imprudências do seu antecessor [Bush filho], o seu mantra ‒ «não fazer merdas estúpidas» ‒ foi uma regra sensata”. Não podendo tornar a lê-lo, que se siga o conselho.

P.S.: Deixo, com este texto, a minha coluna no Observador. Quero agradecer ao José Manuel Fernandes, que foi meu publisher durante quase três anos, e ao Rui Ramos, que me trouxe para um projeto arrojado, fresco e livre. À equipa do jornal, o privilégio de ter partilhado páginas com os melhores. Aos leitores, até já.