Na sequência dos resultados eleitorais, e ao mesmo tempo que o Chega explodia numa precipitada euforia, a esquerda começava a cavar trincheiras e a encher o solo de minas e armadilhas. É verdade — e isso deve ser fortemente sublinhado — que os dirigentes do PS assumiram a sua derrota tangencial com toda a dignidade, com total clareza e sem quaisquer desculpas ou subterfúgios. Mas à sua esquerda, os outros partidos dessa área do espectro político entraram de imediato em agitação e começaram a ensaiar várias ginásticas para tentar iludir, impedir ou recusar a sentença das urnas. A ginástica mais elaborada é a do Livre, mas vamos por partes e vejamos uma a uma.
O PCP em acentuada crise existencial, apressou-se a anunciar uma moção de rejeição ao futuro governo, isto é, a um governo que ainda não existe e do qual se ignoram a composição e o programa. Esse espasmo político dos comunistas — ou será antes um estertor final? — terá sido, como alguém já referiu, uma tentativa de mostrarem que ainda estão politicamente vivos, mas é de admitir que com decisões políticas destas não venham a sobreviver muito mais tempo.
Mariana Mortágua do Bloco de Esquerda, imaginando-se, talvez, espanhola e a própria reencarnação de Dolores Ibárruri, em 1936, e supondo que há cinco colunas de fascistas e nacionalistas a ameaçar Madrid, propõe-se construir uma frente de esquerda para enfrentar o terrível caudilho Luís Montenegro.
Suponho que o ridículo deste duplo esbracejar seja auto-evidente, mas vendo bem nada disto é surpreendente e está em perfeita consonância com a natureza e o habitual modo de acção (e de reacção) desses partidos ou dos seus antecessores (a UDP, por exemplo). É este prato de radicalismo primário e refervido que a extrema-esquerda nos tem servido desde o 25 de Abril 1974. Mas há agora, nesse campo político, uma posição muito mais melíflua, engenhosa e perigosa, porque aparentemente mais razoável e cordata. Falo das posições do Livre, recentemente expressas pelo seu líder.
De facto, o Livre quer que seja a esquerda a governar, mesmo que isso venha a implicar novas eleições. E justifica esse seu insólito desejo por várias razões uma das quais vem embrulhada em mantos de pura benevolência e bom coração. Diz o Livre que assim se evitaria “atirar o PSD para os braços do Chega”. É muito enternecedor este cuidado que o partido de Rui Tavares tem com o bem-estar e o destino do PSD, mas a proposta do Livre não se fica apenas pela ternura.
Rui Tavares quer uma reedição da Geringonça. Há, todavia, um busílis. Em 2015, quando criou a Geringonça, a esquerda tinha maioria parlamentar e agora não tem. Para contornar esse maçador obstáculo o líder do Livre recorre a uma racionalização e a uma perspectiva que — pasme-se — têm sido usadas por André Ventura. De facto, para Rui Tavares, não deveríamos olhar para os resultados das eleições de 10 de Março em termos de partidos ou de coligações, que as venceram e perderam, mas sim em termos de “blocos”, mais precisamente de três “blocos”, exactamente como sugeriu o líder do Chega logo na noite de 10 de Março quando rejubilou com a votação obtida pelo seu partido e anunciou o fim de bipartidarismo. E estribado nessa treta dos “três blocos” Rui Tavares quer que seja o “bloco” de esquerda a governar. Porquê? Porque é mais numeroso do que os outros dois “blocos” — direita moderada e extrema-direita — considerados separadamente. Com essa habilidade contabilística, criaria uma nova Geringonça, poria o seu Livre nas imediações do Poder e entalaria potencialmente o PSD, virando o mundo ao contrário, isto é, obrigando-o a “aliar-se” ao Chega para deitar abaixo essa Geringonça renascida. É de realçar que Rui Tavares foi capaz de avançar com a sua proposta dos “blocos” em frente das câmaras de televisão sem corar e sem lhe cair um dente. Como se dizia antigamente, um artista português que talvez use pasta medicinal Couto. Use ou não use, trata-se, na vertente de potencial entaladela ao PSD, de uma jogada habilidosa que os outros partidos de esquerda não perceberam ou não valorizaram, mas que revela todas as capacidades políticas do líder do Livre e a agilidade com que contorna obstáculos. Convém não esquecer que o Rui Tavares que propõe agora ao país essa benévola solução de “estabilidade” em blocos” ou compartimentos estanques, é exactamente o mesmo que uns dias antes da ida às urnas, e na altura em que todas as sondagens davam uma boa vantagem à AD e uma derrota da esquerda, se mostrara disponível para dialogar com essa AD e com a Iniciativa Liberal para resolução de alguns dos problemas do país, o que muito indignou e irritou Mariana Mortágua e o Bloco de Esquerda.
É certo que a sua proposta dos “blocos”, que já embateu na rigidez áspera e dogmática do PCP e do BE e no desinteresse do PS, que assumiu desde logo que queria ser oposição, e embateria, por certo, a ir por diante, na vontade do Presidente da República, que já tornou claro que indigitará para primeiro-ministro o líder da força política vencedora das eleições e mais representada parlamentarmente. A teoria dos “blocos” não deve, por isso, ter pernas para andar, mas estes pequenos episódios pré e pós-eleitorais ficam como ilustração da habilidade e da capacidade táctica de Rui Tavares e como um aviso à navegação da AD. Ainda que só tenha quatro deputados o Livre do talentoso Rui Tavares vai certamente cantar-lhe doces cantos de sereia e pôr várias cascas de banana no seu caminho.