1. O Público decidiu festejar o Entrudo publicando, na terça-feira gorda, uma crónica carnavalesca de João Miguel Tavares (JMT), que tem por título: “O portocarreirismo na Igreja ou as barbaridades de um padre” e que é, como o neologismo prova, um mero ataque pessoal.

2. A propósito desta sua crónica, lembrei-me de que, em Outubro de 2017, JMT e eu apresentámos o livro “Senhor Bispo, o pároco fugiu”. Nessa apresentação, segundo a Editora Paulus, eu disse que, algumas vezes, sinto algum medo, porque penso que fui insensato em ter aceitado ser padre. Como é que é possível conjugar algo tão único e surpreendente [como é ser padre] com [uma] matéria tão pobre, como é a minha?!

Portanto, há já cinco anos, precisamente na referida apresentação, na presença de JMT e não só, publicamente afirmei o que então a Paulus noticiou: “o Pe. Gonçalo diz que a essência do que é ser padre é comum à de ser cristão: ‘Deus conta connosco e quer que contemos com Ele. Deus conta connosco! Conta connosco e não é por eu ser bom, porque não sou’”.

3. Nessa ocasião, segundo a mesma insuspeita fonte, refutei com veemência o clericalismo, ao afirmar que todos os fiéis, sejam clérigos ou leigos, têm a mesma missão, que é afinal a de ser, em Cristo e na sua Igreja, instrumentos de Deus no mundo: “Todos nós somos isto, somos chamados a ser os seus pés, as suas mãos, neste mundo onde falta tanto carinho”. E, ainda mais claramente, acrescentei: “O padre que é vedeta é um mau padre. O padre tem de ser uma pessoa que leva a Cristo. O interessante do padre é que ele desapareça. Tenho um grande amor ao sacerdócio, mas não gosto do clericalismo. O sacerdócio cristão não é pôr o sacerdote no centro”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

4. JMT estava lá, mas não ouviu, ou ouviu e não percebeu, ou percebeu e esqueceu e, agora, finge não saber. É pena que tenha a língua tão afiada e a memória tão curta. Com efeito, na sua citada crónica, JMT acusa-me de ser expressão do clericalismo: “o Padre Gonçalo Portocarrero de Almada é a cara chapada do clericalismo que conduziu a décadas e décadas de encobrimento”! Nem mais: afinal sou eu o culpado por “décadas e décadas de encobrimento”, provavelmente não só em Portugal, como no mundo inteiro! A verdade é que não sou, como afirma, “a cara chapada” de coisa nenhuma, mas sempre disse que mereciam, pelo menos, uma chapada na cara todos os abusadores e encobridores dos abusos de menores.

5. Apesar de, nessa apresentação, JMT ter afirmado que “os cristãos têm de se preocupar com os seus padres que andam há décadas a levar pancada”, teve agora a incoerência de me atacar publicamente, quando poderia ter tido a decência de o fazer pessoal e educadamente. É nestas coisas que se conhece o carácter, ou a falta dele.

6. Nada de novo, contudo, se se tiver em conta que, em crónica análoga, JMT já ofendeu o Senhor D. Américo Aguiar e, portanto também, o Senhor D. Manuel Clemente, que o promoveu ao episcopado (“D. Américo Aguiar está definitivamente no lugar errado“, Público, 12-10-21). Embora lamente este seu inqualificável anátema, sinto-me muito honrado por tão ilustre companhia, pois muito me incomodaria ser elogiado por quem enxovalhou um Bispo Auxiliar de Lisboa e, consequentemente, o Cardeal Patriarca.

7. Embora a responsabilidade pelos textos que assino seja exclusivamente minha, neste caso, para azar de JMT, tive a delicadeza – noblesse oblige! – de previamente sujeitar a minha crónica no Observador a um responsável pela sua edição, do qual apenas recebi duas sugestões de ordem formal, a que prontamente acedi.

8. O texto publicado na Voz da Verdade foi-me pedido expressamente pela respectiva redacção, em substituição de um outro artigo, que já tinha escrito e enviado, sobre um tema diverso. Pela primeira vez em muitos anos, o jornal oficial do Patriarcado de Lisboa deu-me honras de manchete na primeira página, certamente por se identificar com o seu conteúdo que, deste modo, não só assumiu como destacou.

9. Portanto, JMT falhou na pontaria, quando supôs que ambos os artigos, por sinal quase idênticos – como é lógico, por serem simultâneos e tratarem a mesma temática – contradiziam as linhas editoriais dos respectivos jornais, pretexto de que JMT rasteiramente se queria servir para reivindicar, em terminologia social-fascista, o meu ‘saneamento’ dessas duas publicações, em que colaboro, pro bono, há já muitos anos.

10. Por certo, essas minhas duas crónicas só não são iguais por uma questão de espaço: enquanto na Voz da Verdade estava obrigado a um limite máximo de caracteres, no Observador, por ser um jornal digital, não existe esse constrangimento. Quando tenho uma opinião, não tenho problema em a repetir as vezes que forem necessárias, o que é preferível à hipocrisia de quem, por exemplo, se diz católico e é partidário do aborto.

11. JMT não conseguiu encontrar, nesses meus artigos, uma única afirmação que não seja objectivamente verdadeira, pelo que o seu texto mais não é do que um diletante discurso de ódio pessoal. Por isso, distorce o que está escrito, para que diga o que não diz, mas que JMT queria que tivesse dito. Não insinuei, como falsamente afirma, “que os números [apresentados no relatório da Comissão Independente] foram manipulados”, mas afirmei que, “se a CI apresentasse resultados muito aquém da expectativa gerada pela enorme pressão mediática, é provável que fosse questionada a sua isenção e seriedade.” Porquê? Porque, quando há uns meses se disse que havia por volta de 420 vítimas e o Presidente da República comentou que, afinal, não eram assim tantas, caíu o Carmo e a Trindade. Isto não são suposições gratuitas, como as que JMT faz, mas factos.

12. Como notou, na sua página de uma rede social, o Padre João J. Vila-Chã, jesuíta, que não tenho o gosto de conhecer pessoalmente, é esta a grande diferença entre o ‘tavarismo’ e o ‘portocarreirismo’, ou seja, entre o texto de JMT no Público e a minha crónica no Observador: “o artigo de João Miguel Tavares é um puro [ataque pessoal, ou seja] ‘ad hominem’, indigno de um jornalista de verdade”, enquanto “o artigo do Padre Portocarrero que li e contém 13 pontos, é um exemplo de clareza e ‘fairness’ [em português: equidade, justiça].”

13. Na realidade, JMT, mais do que jornalista, é bruxo pois, em vez de respeitar a verdade dos factos, entrega-se à adivinhação. Apesar de reconhecer o meu “cuidado de assinalar que são hediondos e monstruosos” os abusos de menores na Igreja, adivinhou, decerto por artes mágicas, “que Portocarrero a falar de abusos é como o PCP a falar da Ucrânia” (?!). Claro que JMT está a tentar ser engraçadinho, mas não tem graça nenhuma a sua insistência em brincar com um tema desta gravidade, desrespeitando as vítimas, bem como o seu terrível sofrimento.

14. Quanto à despropositada e mesquinha referência de JMT a algumas circunstâncias familiares, que prezo mas que não são chamadas para o caso, até porque, sem as negar, também as não uso, nem muito menos exibo, digo-lhe o mesmo que D. Quixote disse ao seu escudeiro, Sancho Pança: “o louvor de uns poucos sábios é muito mais importante do que a zombaria de muitos tolos”.

15. Agradeço ao JMT a ruidosa gargalhada que me proporcionou, bem como aos leitores minimamente informados, quando, na sua supina ignorância, me chamou, nada mais nem nada menos, do que “prelado do Opus Dei”! Também nisto, JMT honrou a data desta sua crónica, que não em vão foi publicada no dia de Carnaval!

16. José Lima Pereira, que não conheço de lado nenhum e que se identificou como “leitor regular das crónicas semanais de JMT”, na página deste numa rede social, lamentou “o ataque execrável ao carácter de alguém que se limitou, com factos, a emitir uma opinião, muito bem fundamentada, [sobre] a divulgação pública do relatório da Comissão Independente”.

17. Segundo palavras do mesmo leitor e admirador de JMT, embora seja “execrável” o ataque ad hominem, pior é o que JMT omitiu neste seu texto. Com efeito, “ficamos sem saber a opinião de JMT relativa à divulgação, na forma e na substância do relatório da CI (previsões matemáticas à mistura, como se fosse a previsão do boletim meteorológico para os dias seguintes), porque era disso que tratava a crónica de GPA, era esse o objecto de análise e não outro. E tenho a certeza que era isto que os fiéis leitores, como eu, gostariam de conhecer.

18. Em vez de um texto sério, como a gravidade do tema exigia, JMT, “cego pelo ataque cerrado ao carácter de GPA”, na expressão objectiva do seu referido amigo e fiel leitor, não escreveu uma crónica, mas um panfleto, no estilo do mais abstruso fanatismo anticlerical, sem razões nem argumentos, achincalhando quem não foi capaz de refutar em nenhuma das suas afirmações. De facto, este exercício sórdido da mais ridícula e vã maledicência é o exemplo cabal de que a troça é a homenagem que o vício e a estupidez prestam à virtude e à verdade.

19. Rezo sinceramente por JMT – o seu rancor por mim não é, graças a Deus, recíproco! – para que, neste tempo salutar da Quaresma, se converta aos valores cristãos da verdade, da coerência, da justiça, da caridade e, sobretudo, do respeito e compaixão pelos menores que foram vítimas de abusos, na Igreja e fora dela.

20. A propósito, um conselho quaresmal: embora as suas mal-humoradas crónicas sejam excelentes penitências para quem as lê, faça jejum dos temas de que nada sabe e abstinência das referências às pessoas que, como eu, não conhece minimamente. Os leitores do Público agradecem.